quarta-feira, 24 de outubro de 2007

East of paradise – 2006

Este ano o DocLisboa dedica uma retrospectiva (não integral) a Lech Kowalski, em tempos realizador underground nova-iorquino, agora residente em França, “militante” documentarista. Como todos os seus filmes, segundo consta e segundo o próprio, East of Paradise, que ganhou um prémio especial em Veneza, é um objecto tirado às suas entranhas e, neste caso, também às da sua mãe. A primeira parte do filme é dedicada exclusivamente a ela que, na primeira pessoa, relata as suas memórias traumáticas de sobrevivente, nos campos de concentração polacos, aquando da invasão nazi à sua nação. A câmara raramente se afasta do seu rosto (há por lá uns planos de tectos e paredes dispensáveis, penso eu) enquanto ela expurga os seus demónios, as suas memórias, os seus fantasmas. Sorri de quando em vez (há sempre memórias boas dentro daquele turbilhão, graças a Deus à selectividade), chora bastantes vezes mas relata-nos sempre de forma precisa e minuciosa aquela ocupação, não de um ponto de vista histórico-político (mas no fundo acaba por sê-lo), mas sim do ponto de vista pessoal e afectivo.
Na segunda parte do filme (há uma cisão brusca nele) é-nos mostrada a vivência (ou, lá está, a memória dessa vivência) de Kowalski em Nova Iorque. Estabelecendo um paralelo (talvez etário) entre as vivências da sua mãe com as dele, Kowalski, narrando sobre material de arquivo por si filmado, relembra os tempos de estudante de cinema, a invasão punk britânica (Kowalski fez um dos mais famosos documentários sobre a chegada dos Sex Pistols à América em D.O.A. – Dead on arrival), a sujidade das ruas, os freaks, os junkies, a pornografia, ou seja, lembra-se e mitifica Nova Iorque. Recorda-se também da morte de John Spangler, seu amigo, figura icónica desse underground, infectado com HIV, filmando-o na sua morte, no seu padecimento, e na sua vitalidade.

O mais fascinante no filme tem a ver com o paralelismo estabelecido entre duas gerações e a relação que elas estabelecem com a sua memória. A mãe de Kowalski só através da selectividade da sua memória se pode lembrar e comover(-nos) com o seu passado (as imagens de arquivo que existirão sobre a ocupação serão demasiado impessoais). Lech Kowalski para além dessa selectividade da sua memória tem também o seu material fílmico (que também é selectivo porque, na verdade, tudo é uma selecção quando alguém se predispõe a gravar o que quer que seja). Lech Kowalski aliando essas duas formas de memória torna a sua memória num híbrido, o material “objectivo” filmado é contaminado pela “subjectividade” da sua memória real… ou “orgânica”.
A cena final do filme, e principalmente o último plano, é magnífica. A mãe de Lech Kowalski fotografa-o, assim como a sua câmara (e ao seu colega de iluminação), enquanto este a filma. As fotografias tiradas por ela vão então surgindo, intercalando o material filmado por ele. No último plano ele, pondo-se ao lado da mãe (ou seja, ambos captados pela câmara de filmar), tira uma foto à câmara e o que fica é a imagem estática do que a câmara está a filmar (Lech e a sua mãe) e não o que a máquina fotográfica realmente captou. Confuso, não?… melhor: o último plano é uma imagem estática de Lech e da sua mãe captados pela câmara de filmar, como se o clique da máquina fotográfica captasse e congelasse o que a câmara de filmar capta. Como se a memória fotográfica, por momentos, equivale-se à memória fílmica… realçando mais ainda que ambas ganham uma nova dimensão quando confrontadas com a memória “orgânica” que, por fim, as organiza.

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