quarta-feira, 24 de outubro de 2007

East of paradise – 2006

Este ano o DocLisboa dedica uma retrospectiva (não integral) a Lech Kowalski, em tempos realizador underground nova-iorquino, agora residente em França, “militante” documentarista. Como todos os seus filmes, segundo consta e segundo o próprio, East of Paradise, que ganhou um prémio especial em Veneza, é um objecto tirado às suas entranhas e, neste caso, também às da sua mãe. A primeira parte do filme é dedicada exclusivamente a ela que, na primeira pessoa, relata as suas memórias traumáticas de sobrevivente, nos campos de concentração polacos, aquando da invasão nazi à sua nação. A câmara raramente se afasta do seu rosto (há por lá uns planos de tectos e paredes dispensáveis, penso eu) enquanto ela expurga os seus demónios, as suas memórias, os seus fantasmas. Sorri de quando em vez (há sempre memórias boas dentro daquele turbilhão, graças a Deus à selectividade), chora bastantes vezes mas relata-nos sempre de forma precisa e minuciosa aquela ocupação, não de um ponto de vista histórico-político (mas no fundo acaba por sê-lo), mas sim do ponto de vista pessoal e afectivo.
Na segunda parte do filme (há uma cisão brusca nele) é-nos mostrada a vivência (ou, lá está, a memória dessa vivência) de Kowalski em Nova Iorque. Estabelecendo um paralelo (talvez etário) entre as vivências da sua mãe com as dele, Kowalski, narrando sobre material de arquivo por si filmado, relembra os tempos de estudante de cinema, a invasão punk britânica (Kowalski fez um dos mais famosos documentários sobre a chegada dos Sex Pistols à América em D.O.A. – Dead on arrival), a sujidade das ruas, os freaks, os junkies, a pornografia, ou seja, lembra-se e mitifica Nova Iorque. Recorda-se também da morte de John Spangler, seu amigo, figura icónica desse underground, infectado com HIV, filmando-o na sua morte, no seu padecimento, e na sua vitalidade.

O mais fascinante no filme tem a ver com o paralelismo estabelecido entre duas gerações e a relação que elas estabelecem com a sua memória. A mãe de Kowalski só através da selectividade da sua memória se pode lembrar e comover(-nos) com o seu passado (as imagens de arquivo que existirão sobre a ocupação serão demasiado impessoais). Lech Kowalski para além dessa selectividade da sua memória tem também o seu material fílmico (que também é selectivo porque, na verdade, tudo é uma selecção quando alguém se predispõe a gravar o que quer que seja). Lech Kowalski aliando essas duas formas de memória torna a sua memória num híbrido, o material “objectivo” filmado é contaminado pela “subjectividade” da sua memória real… ou “orgânica”.
A cena final do filme, e principalmente o último plano, é magnífica. A mãe de Lech Kowalski fotografa-o, assim como a sua câmara (e ao seu colega de iluminação), enquanto este a filma. As fotografias tiradas por ela vão então surgindo, intercalando o material filmado por ele. No último plano ele, pondo-se ao lado da mãe (ou seja, ambos captados pela câmara de filmar), tira uma foto à câmara e o que fica é a imagem estática do que a câmara está a filmar (Lech e a sua mãe) e não o que a máquina fotográfica realmente captou. Confuso, não?… melhor: o último plano é uma imagem estática de Lech e da sua mãe captados pela câmara de filmar, como se o clique da máquina fotográfica captasse e congelasse o que a câmara de filmar capta. Como se a memória fotográfica, por momentos, equivale-se à memória fílmica… realçando mais ainda que ambas ganham uma nova dimensão quando confrontadas com a memória “orgânica” que, por fim, as organiza.

quinta-feira, 18 de outubro de 2007

RRRrrrr!!! – 2004

Non sense mais non sense mais non sense com a falta de elegância incaracterística de um francês. Alain Chabat, realizador e actor, deve venerar os Monty Python e portanto, como bom discípulo, segue os seus ensinamentos que são: nenhuns. Tudo existe num universo sem sentido, até o próprio filme, e como tal nada deve fazer sentido. Nem o fim, nem o meio, nem o princípio devem corresponder a um mínimo de lógica (não necessariamente por esta ordem, como Godard não diria mas filmaria.) É certo que no final a satisfação de o ter visto não é tão grande como aquela sentida após se assistir a um filme da pandilha Python, mas não desmerece o reconhecimento. Deixai Chabat aperfeiçoar a máquina e a quinquilharia que no futuro teremos alguns filmes mais que interessantes.
Lembro-me de Chabat no famoso, e sobrevalorizado, Le gôut dês autres com uma actuação minimalista. Neste também anda pelo mesmo registo, o filme à volta dele é que anda todo histérico, e a certa altura lembrei-me de um Takeshi Kitano ou de um Buster Keaton num filme dos Monthy Python… é exagero meu esta extrapolação... ok, deixem-no aperfeiçoar as técnicas pythonescas e depois logo pensemos noutros horizontes.
A história do filme é mais ou menos assim: num tempo pré-histórico (faz sentido o absurdo, não sabiam contar histórias), numa povoação onde todos se chamam Pierre, ocorre um assassinato que desencadeia uma investigação levada a cabo pelos nativos. A isto junte-se uma rivalidade entre povoações, a que tem o segredo do champô e a que não tem, e já está. O resto são piadas atrás de piadas, non sense atrás de non sense, e no final partimos para outra.

The Lookout – 2007

Ainda não é desta que o actual cinema independente americano me satisfaz. Scott Frank, que já escreveu alguns argumentos interessantes, parece querer seguir o caminho trilhado por alguns dos seus colegas indies. Caminho esse que, não querendo generalizar, parte invariavelmente do mesmo princípio (o adolescente inadaptado) e quase sempre chega ao mesmo fim (a reconciliação familiar). Este modelo parece-me ter explodido (porque é sempre difícil descortinar origens) com Donnie Darko e, de enxurrada, arrastou todo esse género de cinema. Devo dizer que não sou grande fã de Donnie Darko (apesar de recentemente ter visto a versão director’s cut e ter melhorado a minha opinião sobre ele) e, se calhar, é muito por causa disso que acho (quase) todos estes filmes indies desinteressantes. Brick, Chumscrubber, Thumbsucker, Me, you and everyone we know, Little miss sunshine, etc todos me passaram ao lado. Talvez dos mais recentes só The squid and the whale me surpreendeu. Este The lookout, não sendo mau de todo, acaba também por não estar ao nível que esperaria (mas quem me manda esperar algo?)
Ao contrário da geração de 90 (Spike Lee, Quentin Tarantino, Wes Anderson, Hal Hartley, Larry Clark, etc, que se caracterizavam por ter um cinema extremamente pessoal, cinéfilo, é certo, mas quase intransmissível) esta geração está mais interessada em olhar para o alheamento dos jovens indivíduos como algo trágico (os de 90 não eram tão pessimistas). Apesar disso nenhum deles chega aos limites formais, abstractos e sem ponta de julgamento de um Larry Clark ou um Gus Van Sant, pois estão mais interessados em integrar nos seus filmes um enredo intricado e cheio de complexidades que acabam por se desviar do essencial.

Chris Pratt (Joseph Gordon-Levitt, que já é uma confirmação, é com Jeff Daniels o melhor do filme) foi uma popular figura na sua escola e foi também o culpado de um grave acidente de viação, onde morrem dois seus amigos e deixa mutilada a sua então namorada. Anos mais tarde encontramo-lo incapacitado psicologicamente (tem perdas de memória, não consegue efectuar determinadas tarefas rotineiras, etc) dependente monetariamente, a contra gosto, da sua rica família. Vive com um amigo cego (Jeff Daniels), que é o seu suporte moral diário, e vive à conta de um trabalho de vigilante num banco no meu do nada. Certo dia vê-se envolvido numa complexa trama que envolve um punhado de personagens bizarras, um assalto ao “seu” banco e outras coisas desinteressantes (nota-se claramente que aqui o argumentista Scott Frank se sobrepôs ao cineasta.)
É claramente aí que a minha afinidade com o filme falha, porque a certa altura é forçada a entrada da intriga hollywoodesca (e aqui se vê a clara diferença entre a geração anterior dos independentes e a actual, que muitas vezes, têm a chancela dos grandes estúdios americanos… porque afinal estes filmes sempre têm um mercado.) Numa época em que as reflexões de Gus Van Sant e a implacabilidade moral de Larry Clark ditam regras, aquilo tudo soa-me a conversa da tanga.

quarta-feira, 17 de outubro de 2007

Ascenseur pour l’échafaud – 1958

Numa altura em que a geração da Nouvelle Vague lançava os primeiros rebentos da “revolução” (começavam a surgir algumas curtas-metragens de alguns arautos do movimento, que até ali só escreviam nas páginas do Cahiers du Cinema) houve algumas longas-metragens “não oficiais” que a anteciparam. Mas, como chico-espertos que eram os moços dos Cahiers, logo tratavam de dar nas orelhas aos filmes que não faziam parte da “família”. Faziam-no com o intuito de, sem oposição, melhor tomarem de assalto o mercado cinematográfico francês. Alguns realizadores e filmes (apesar de eu fazer esta distinção, eles nem sequer a faziam) talvez merecessem esse puxão de orelhas no entanto outros há que, além de não o merecerem, ultrapassam, na Ducati de Casey Stoner, os gestos mais ou menos vanguardistas do movimento. Esta estreia de Louis Malle nas longas-metragens é disso exemplo.
Alicerçado nos arquétipos do filme noir americano Malle opta por subvertê-lo sem nunca escamotear o gozo que isso traz. A loira madame Carala (a já fenomenal Jeanne Moreau), chorando ao telefone, suplica a Julien Tavernier (Maurice Ronet) que faça, naquele dia, o golpe que planearam e mate o patrão deste, seu marido, monsieur Carala. Assim é. Julien, com artefactos no seu escritório e técnicas à super espião, executa o plano quase sem mácula. No carro é que se apercebe que ainda há uma prova a eliminar. Volta atrás. Quando sobe no elevador para o seu escritório este pára por corte de energia. Ali fica ele praticamente todo o filme.
Na rua um jovem casalito de classe baixa, ela, morena, fascinada com o glamour à lá espião de Julien, ele fascinado com o seu carrão, metem-se ingenuamente no seu carro e põem-se on the road. Road essa que os leva ao assassínio e ao pânico de se sentirem perseguidos por polícias.
A madame Carala julga Julien fugido, cobarde e infiel, desconhecendo que ele ficara preso no elevador, pois o carro dele passara por ela a grande velocidade com a jovem morena dentro e um vulto de homem. Madame Carala deambula então por Paris ao som da sua interrogatória e monocórdica voz de consciência e ao som do trompete de Miles Davis (icónica, famosa e cooooool banda sonora).

No final lá se desmaranha o trágico novelo narrativo e o que fica, e se sobrepõe, é a deliciosa subversão dos lugares comuns do filme noir. Ora a femme fatale, a loira madame Carala, apesar de ser aquela que despoleta o crime, é também aquela que trará maior densidade psicológica ao filme com a sua voz off a ecoar e a desconfortar (geralmente essa voz é atribuída aos homens). O homem assassino passa o filme impotente, em silêncio, preso no elevador. É então o casal de jovens inconscientes que traz o sangue e vertigem ao filme, roubando, matando e dissimulando (como se estivessem a viver num filme, mas atormentados com isso). E o facto da jovem morena, a femme maternal (são sempre elas que acalmam os corações rebeldes masculinos), se sentir conivente nos crimes do seu par (ela quer que se escreva nos jornais, quando forem apanhados e mortos, o título “os amantes trágicos”) soa-me a subversão.
Portanto Louis Malle, neste filme, põe em Paris quatro arquétipos do filme noir americano e nenhum deles se sente confortável com o papel que lhe coube (estão noutro país, noutra cultura, onde as estradas não se estendem para sempre, têm que andar às voltinhas). Logo, os quatro, sentem que terão um fim trágico, como nos filmes noir.

sábado, 13 de outubro de 2007

Coffy – 1973

Badasssss black chick Pam Grier é a heroína neste famoso blaxploitation. Coffy (mulherão Pam Grier) é uma enfermeira que tem a irmã internada num hospital, tem um amigo que é polícia e tem um namorado que é candidato a senador. São estas as três paixões de Coffy. E são elas que a vão deixar só.
Coffy surge-nos inicialmente como uma badassssssssss prostituta que arruma dois “pequenos” traficantes, causadores directos do internamento vegetativo da sua irmã, mas logo de seguida é-nos mostrada a sua verdadeira face. Coffy não passa de uma frágil enfermeira que tenta viver melhor com a memória da sua infeliz irmã. Não vive essa dor sozinha, tem a companhia do seu amigo de infância, o agora polícia. Polícia íntegro, pois expressa-se (e actua em conformidade) várias vezes sobre os problemas na sociedade afro-americana. E um dos problemas que mais aflige essa comunidade é o facto de os brancos, por trás, manipularem os chefes pretos, sejam eles políticos, traficantes, etc.
Certa altura Coffy envolve-se com o candidato a senador que lhe diz defender os mesmos ideais que ela. Apaixona-se então por ele. Entretanto o polícia, demasiado íntegro, é espancado por um par de capangas com a conivência dos seus colegas polícias. Coffy “in rage” vai então encetar uma vingança que, começará por baixo (um poderoso chulo, mas não tão poderoso como pensa) até chegar ao topo onde encontrará o seu namorado e candidato a senador. Pelo meio encontrará, de facto, um grupo de homens brancos que manipulam os poderosos homens pretos. Mas, mais grave que isso, o que Coffy descobre é um grupo de homens que controlam uma sociedade machista e misógina, consequentemente racista e segregadora.
Para o fim Coffy ainda quer acreditar que o namorado a ama (apesar dele a ter mandado matar, à sua frente, anteriormente – o que reforça, algo ingenuamente, a face frágil de Coffy e não a faceta badasssss, que de quando em vez surge). Mas ele ama-a tanto como a lourinha que o aguarda no quarto. No fim Coffy, frágil como sempre, caminha só pela praia. A vingança fez-se, a mulher desmoronou-se.

Jack Hill, realizador e argumentista, que já colaborara com Pam Grier, e lhe deu esta oportunidade de ser a leading star no filme, tem a desfaçatez, e sentido de humor, suficiente para também ele se pôr em causa. Afinal ele é branco num filme negro (os blaxploitations na generalidade eram filmados por brancos para os guetos pretos) e, numa subtil cena, auto-caricatura-se. O candidato a senador, a certa altura, cercado de apoiantes está a fazer umas declarações sobre os seus objectivos pró afro-americanos e o realizador (branco) daquilo manda os apoiantes aplaudi-lo, interrompendo o discurso, e corta a cena. É uma cena pequeníssima, esclarecedora mas consciente de Hill.

Isto tudo num filme funky, com banda sonora a cargo de Roy Ayres (para quem não sabe, é Grande – e parece que vem ao Casino de Lisboa um dia destes…), carros monstruosos (que ocupavam o scope inteiro, pareciam tubarões nas estradas), armas grandalhonas (carros e armas, objectos fálicos, que Coffy usará como armas de morte contra os homens, o último morrerá de falo desfeito (as mulheres levam porrada corpo a corpo, numa cena memorável, onde todas ficam de mamas ao léu), afros gigantes, cores berrantes, vocês sabem… estamos nos tempos dos funky pimps, etc.
Coffy é um entretenimento consciente, com um final desolador, e com uma grande mulher ao leme. Ainda estou para saber o que é melhor que isto (à excepção de Foxy Brown, também de Jack Hill, claro está).

sexta-feira, 12 de outubro de 2007

Enter the Dragon - 1973

Ponto culminante na obra de Bruce Lee. A sua própria viúva diz, num dos extras do dvd, que a maior ambição dele era fazer uma produção hollywoodesca na China. Conseguiu mas não a tempo de a ver. Morreu dias antes da sua estreia.
Como quase todas as produções da máquina de Hollywood há sempre algo que se perde. E perde-se mais quando não há um excelente realizador por detrás da coisa. Robert Clouse não me parece ser especialmente dotado - safou-se como pôde - e fez um típico filme dos seventies americano - demasiado americano - adicionando-lhe a prática de kung-fu. Psicadelismos, cores berrantes (parece que depois dos seventies nunca mais Hollywood quis pintar uma tela de cinema), scope, etc. Tudo está cá aliado a uma trama à James Bond - então em alta - com um agente infiltrado num lugar exótico para derrubar um tirano megalómano. Lee (Bruce Lee, e o facto de o nome da personagem ser esse parece-me reforçar o empenho pessoal no projecto) é o James Bond de serviço, que se vai ver infiltrado num torneio de kung-fu, com alguns dos melhores lutadores do mundo, numa ilha apátrida, de um só dono Han (Kien Shih). É então enviado para lá porque, tanto a polícia como os monges de shaolin, têm fortes suspeitas de que Han anda a tramar algum esquema ilegal. E assim é: o torneio é um pretexto para angariar pessoal de confiança que possa exportar ópio para as mais diversas paragens do globo.

Agora vamos ao que interessa: a porrada. Algumas dessas cenas são, de facto, muito boas, e quem é fã de Bruce Lee sabe que não há modo dele falhar. Dizem, a propósito do período clássico de Hollywood, que Fred Astair estava para a classe alta como Gene Kelly para a classe baixa (sendo ambos geniais). Eu digo que Bruce Lee está para Astair como Jackie Chan para Kelly. As melhores cenas de cacetada ocorrem no subsolo e é fantástico vê-lo, de corpo todo contraído (coberto de sombras), à espera dos avanços dos oponentes (geralmente fora de campo) para, com pequenos movimentos (a elegância de Astair), aumentar a área do cemitério da zona. Também por lá andam um John Saxon (que lá se vai safando numa ou noutra pirueta), Jim Kelly (actor do muito famoso blaxploitation-kung-fu-shit Black Belt Jones também realizado por Robert Clouse, que nunca vi), Yang Sze (um dos vilões supremos dos filmes de kung-fu) e umas quantas moças jeitosas (afinal de contas estamos num filme de 007 - mas neste caso o mau é quem tem os gadgets). E de grande valor é também a banda sonora de Lalo Schifrin, mestre em temas funkys, logo mestre nos seventies.

No seu todo é um óptimo filme de kung-fu, não é contudo um Way of the Dragon nem um Game of Death, e bem merece que o dignifique, nem que seja pela imensa admiração que tenho por Bruce Lee.

Du Rififi chez les hommes – 1955

Jules Dassin, realizador americano de vários filmes noir, enquanto esteve exilado em França (era bruxa no tempo em que as caçavam), adaptou ao grande ecrã a então pouco conhecida personagem francesa de romances de cordel Rififi (calão francês para escroque, ou melhor para ‘tough guy’), e tornou-a ícone. Nunca, anteriormente, vira algum filme de Dassin mas posso garantir-vos, com toda a segurança, que ele aqui é mestre. Du Rififi chez les hommes é dos maiores (senão o maior) filmes de golpe que já vi. Se enquanto via o Quais des Ofévres me lembrava de um alfaiate em labor aqui a imagem que me ocorreu foi de um relojoeiro. Garanto-vos que aqui não há qualquer ganga (logo não há alfaiates, ou pelo menos alfaiates de mineiros), todas as cenas têm razão de ser, todas aprofundam as personagens, todas mostram acções e elidem intenções, e nunca, em algum momento, nos esquecemos que estamos em território noir, logo trágico. É-me profundamente exaltante ver filmes destes onde, com uma precisão temporal refinadíssima, se tomam as mais diversas liberdades. Há por lá uma cena de meia hora (não sei o tempo exacto, mas por mim poderia estender-se para sempre) em que não se ouve uma palavra, em que o som é mínimo, onde o cinema é máximo. É incrível garanto-vos.
A história é mais ou menos assim. Toni “Rififi” le Stéphanois (Jean Servais, grande actor entre grandes actores, o elenco é fabuloso incluindo o próprio Jules Dassin sob o pseudónimo Perlo Vita) fora, antes de ter estado encarcerado, um dos mais perspicazes ladrões de Paris. Agora, arredado dessa vida, é um homem viciado na má vida, que lhe dá com os pés e que o sobrecarrega de dívidas. A certa altura é aliciado por dois compinchas – mais tarde virá o terceiro - para participar num golpe a uma ourivesaria. Ele aceita, já que nem dinheiro nem mulher tem (a primeira cena dele com ela é fabulosa). Planeiam e fazem o golpe (os 30 min. de perfeição). Na última parte do filme Grutter dono do bar L’âge d’or, onde trabalha Mado (Marie Sabouret), interesse amoroso de Toni, descobre quem fez o golpe e tenta chantageá-los, raptando o filho de um deles. Toni moralmente, até por que é padrinho da criança, sente-se obrigado a resgatá-la.

As pequenas coisas do filme, que o tornam grande, são tantas que não vale a pena enumerá-las. Mas há um aspecto que adoro. Os homens e as mulheres. Toni le Stéphanois ainda ama Mado (e vice-versa), mas moralmente já não a pode encarar, pois ela não é mais que uma reles rameira. Mario Ferrati (Robert Manuel) vive e ama a rameira que tem lá em casa, pois não tem as quezílias morais de Séphanois. César le Milanais (Perlo Vita aka Jules Dassin) é um bon-vivant, deita-se com aquelas que se queiram deitar com ele; e chora ao saber da morte de Ferrati. Jo le Suedois (Carl Möhner), o mais jovem, é um homem de família. É a figura mais socialmente estável, e é aquele que mais vai cair a pique. Com ele há uma cena estrondosa: no quarto da criança, então desaparecida, é lhe entregue, assim como a Toni (os outros dois já morreram), a mala com o dinheiro correspondente ao golpe, ao abri-la, há um silêncio (daqueles que gritam) denunciador de tudo. O dinheiro que ali está diante deles ocupou o lugar da criança. Depois há Grutter, carta fora do baralho, dono da casa de alterne e que com elas mantém uma relação mercantil.
Todos deixam de viver – não é um spoiler, aliás isto é um film noir (tal & qual, à francesa e tudo) – quando elas deixam de acreditar neles. Não se pode falar em traição (excepto num caso, o de César, que não a ama), elas é que os amavam tanto quanto eles as amavam.

Quando revir o filme talvez volte a falar dele. Porque, como os melhores, só visto e revisto… e, claro está, mais um herói/realizador para o cardápio.

quarta-feira, 10 de outubro de 2007

Fay Grim – 2006

Não tendo visto a prequela Henry Fool (mas Hal Hartley disse que o pretende não dependente de Henry Fool) achei Fay Grim, complemento feminino ao filme matriz, desenxabido.
Primeiro: Parker Posey é um espanto de mulher. Parker Posey é Fay Grim e, portanto, é 90% do que foi filmado – não do filme, if ya know what i mean, buddy – o que por si só eleva bastante a qualidade do material. Resto: tem graça que Hartley disse que é normal nos melhores filmes policiais, ou de espionagem ou o raio que o valha, as personagens – e consequentemente o espectador - às tantas já não saberem às quantas andam. E de facto isso aconteceu-me no filme (e acontece-me nos policiais em geral, frequentemente) mas, ao contrário do que me acontece noutros, mais cedo ou mais tarde quero perceber o que se me escapou, ou pelo menos ficar intrigado com isso. Mas em Fay Grim isso não me aconteceu. Perdi o fio à meada e às tantas já nem isso me interessou, fiquei-me pelos planos de Posey.Uma coisa é certa, e de muito boa construção, a gravidade que se vai sedimentando ao longo do filme - objectivo de Hartley – foi plenamente cumprido. Fay Grim inicialmente surge-nos como uma irresponsável mãe, que faz flirts com polícias e homens mais velhos, que nada sabe sobre o que se passa para além do seu bairro, vai-se ver envolvida numa conspiração de tal ordem e medida, que já nem cabe nos E.U.A., e lhe vai retirando o humor e acentuando-lhe a gravidade. Neste aspecto, reforço, o filme demonstra alguma mestria. De resto pouco, ou nada, me interessou, além de Posey. Lá vou eu tentar rever o Simple Men, Trust, e Amateur, e já agora ver o Henry Fool (porque se calhar é mesmo necessário), pois Hal Hartley foi (e voltará a ser, caramba!) grande.

Planet Terror - 2007

Bruce Willis (quem mais?) matou Osama bin Laden. Eis a piada mor de Planet Terror e é a partir dela que tudo em Planet Terror faz sentido... ou melhor é a partir dela que tudo deixa de fazer sentido. Rodriguez sempre teve a desfaçatez, e engenho, de se marimbar para a lógica, para a coerência, para o credível. Neste filme, pelo menos, tudo serve para ser esticado aos limites, joga-se no absurdo e tritura-se tudo – mamas, rabos, pernas, pescoços –, na montagem, na banda sonora, no guião, etc. As personagens aqui, como na generalidade dos seus filmes, só sobrevivem se mutiladas, estropiadas, ensanguentadas, e se é que sobrevivem. O motor da trituradora (Grindhouse) só é verdadeiramente accionado quando surge a tal piada – e faz toda a lógica que assim seja, pois é o momento mais ilógico de tudo, e mais cool. No entanto o que mais me afastou deste divertimento descomprometido foi a injecção de ingenuidade que Rodriguez lhe quis dar. A meu ver essa ingenuidade, pelo menos desta forma, já não pode existir porque se está a fazer um filme sobre a memória de outros (sobre os seus cadáveres). Que ele sinta uma enorme afinidade com os exploitations, e os série b no geral, parece-me bem, muito bem, mas que a partir deles nada mais queira fazer para os valorizar, parece-me mau.
A história é, mais ou menos, isto: Bruce Willis matou Bin Laden e, por isso, foi descarregado sobre o exército norte-americano, então em missão no médio oriente, uma arma química manhosa, que os transforma numa espécie de zombies. Quando o exército volta à pátria começa a procurar uma cura para a coisa. Encontram um cientista (árabe, diga-se) que está-se pouco importando para o dilema deles e explode o recipiente químico pelos ares que, em poucos minutos, infectará o Texas (!) inteiro. Depois um grupo de improváveis sobreviventes, os heróis da história, tentam salvar o couro escapando para o México (sim, a sombra política de Romero anda por aqui, mas sem a sua acutilância).
O filme tem momentos soberbos, a cena inicial da go-go dancer, e futura (e é, de facto, uma delícia) one-leg-machine-gun, Cherry Darling (Rose McGowan em grande forma, é a melhor coisa do filme) merece a futura compra, em saldos, do dvd; aquele(s) plano(s) do decote da Fergie também merece a futura compra do dvd, seja em saldos ou não; as esgrouviadas cenas finais onde tudo é filme e tudo literalmente queima (incluindo a fantástica cena de sexo e o coito interrompido da missing reel); os olhos da lésbica Dr. Block (Marley Shelton muito bem maquilhada), etc etc etc. Há, na verdade, muitas coisas boas para uma agradável noitinha no cinema. E uma delas, ia-me esquecendo, é o trailer do Machete: gajos feios, gajas boas e falta de juízo.

Ok… pensavam que não iria fazer comparações com o Death Proof? É inevitável, não só por a sua origem ser comum como também o é o seu fim (ambos têm finais femininos, you know, the she-world).
Planet Terror é muito mais esgrouviado que a parte de Tarantino, contudo, no seu todo, não o achei mais conseguido que o outro. Parece-me que, em ambos, poderia haver muito mais economia narrativa, não tendo ainda visto “a experiência” Grindhouse tal como foi concebida, estou até em crer que estas novas montagens, para mercado europeu, vieram prejudicá-los. Como ia dizendo, concordo que este Planet Terror está mais próximo de uma experiência xunga que Death Proof (Tarantino, acreditem ou não, leva-se demasiado a sério... e sai-se bem, pois sabe que já não adianta fazer tha real thing... os tempos são outros), no entanto, além do ponto em que Rodríguez quer acentuar a ingenuidade da experiência, há outro em que perde para o seu par: a simplicidade. Tarantino, ainda que com conversa a mais (lá está a montagem europeia – e se calhar nesta montagem europeia vs. montagem americana encerra-se a questão fundamental, afinal de contas o produto é típico americano), desenvencilha-se melhor de sub-enredos (em que ele é mestre), ao contrário de Rodríguez que perde-se neles à custa de n personagens sem qualquer densidade e com demasiado tempo de antena.
E depois também não tem a mestria de Quentin em dar densidade “more than meets the eye” aos seus filmes. Não concordo que os exploitations sejam filmes rasos sem qualquer interesse para além da sua fruição. Os melhores exploitations são dos melhores filmes que já se fizeram (vejam o meu post anterior), claro que encapotados por elementos sexuais, violentos, e outros que tais, para melhor venderem. Apesar de nem achar Death Proof o melhor filme de Quentin, é sem dúvida um filme mais refinado (palavra mais absurda, mas julgo que correcta, para caracterizá-lo) que o de Robert Rodríguez. No entanto Rodríguez fez mais e melhores planos no seu filme que Tarantino… e acabaram-se as comparações que isto não leva a nada. Ambos merecem a nossa atenção, mais que todos aqueles que, este ano, serão nomeados à categoria de melhor filme estrangeiro pela academia.

domingo, 7 de outubro de 2007

MS .45 - 1981

Thana (Zoë Lund, futura co-argumentista de Bad Lieutenant), muda, frágil, tímida e virgem certamente, trabalha na alta-costura para um estilista de sexualidade ambígua. Nesses minutos iniciais que a vamos conhecendo vamos também sabendo que o seu apartamento está a ser assaltado. Quando ela se dirige para casa a tensão vai naturalmente aumentando, pois o encontro entre ela e o assaltante parece inevitável. Contudo a meio do caminho acontece o inesperado (tão valente como um pontapé nos tomates): é, com uma arma apontada à cabeça, violada por um mascarado (Abel Ferrara, também realizador). Transtornada e esfarrapada chega a casa, senta-se na cama para recuperar o fôlego, ordenar as ideias e chorar. Não tem tempo… dentro de casa ainda está o assaltante - por breves momentos pensei que era o mascarado; não era (uma bigorna a 1km de altura cai sobre os tomates que já estavam doridos). Thana é de novo violada. Não chora – secou-se-lhe a alma. E de alma seca, com um ferro de engomar, mata o violador.
Daqui por diante, e após se sentir confortável ao premir o gatilho da .45, Thana andará pelas ruas nova-iorquinas matando o sexo oposto, mais precisamente, aqueles que exibirão apetite sexual. De inicial figura angelical torna-se em vingativa figura sexual.
No final, mascarada de freira numa festa Halloween, irá matar o seu chefe, que a aliciara sexualmente, e será morta, penetrada por uma faca, por uma colega por quem ela sentira alguma atracção. Colega essa que, ao longo do filme, manda à fava pelo menos um gajo mais atrevido. Esse final é de estalo: Thana incrédula, de .45 em riste, não acredita que foi penetrada pela colega, que parecia partilhar com ela a mesma visão. De estalo porque nesse momento ela chora, apercebendo-se que entretanto perdera a alma.

Geralmente é dito que na génese deste filme está Death Wish (e na génese de ambos estará Taxi Driver, digo eu), de Michael Winner com Charles Bronson, e concordo plenamente. Contudo a impiedade moral de Ms .45 é bem mais forte. Paul Kersey (Bronson) perdia a família (numa sequência também ela violenta) não perdia a alma. O seu único propósito tornou-se a vingança, o propósito de Thana, pelo contrário, era ingénuo, recuperar o irrecuperável, a virgindade. Ambos não conseguem o objectivo, mas a freira, à morte, pelo menos chorou (lembremo-nos do final de Bad Lieutenant)... o outro...? bem, o outro originou umas quantas sequelas cinematográficas.

sábado, 6 de outubro de 2007

China, China – 2007

De João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata vem esta curta que antecede o filme que postei anteriormente. É uma bela curta. Dorothy é China em Lisboa. Ou melhor o espírito da Dorothy, do Feiticeiro de Oz (sim, há títulos de filmes que não se traduzem para inglês), encarna em China, emigrante chinesa, em Lisboa. E, como todos os espíritos que se apropriam de corpos alheios, não se sabe encaixar na realidade. Mas esta Dorothy não tem um cãozinho, tem um filho, não tem sapatos mágicos, apesar de após bater três vezes os calcanhares com os que trás, achar o Martim Moniz local encantado.
O filme é encantado: disparam-se armas e ninguém morre, como nos filmes de John Woo, salta-se e dança-se em cima da cama, que sobrevoa o skyline nova-iorquino em fundo, e esta não parte, etc. Mas o final trás a tragédia. China, ao contrário de Dorothy, não retorna a casa no final…

Tian bian yi duo yun (aka Wayward cloud) – 2005

Os dois filmes de Tsai Ming-liang que antes vira deixaram-me algo frio e distante. Bu San (aka Goodbye, Dragon Inn) não gostei de todo, apesar da premissa me ter aliciado bastante (e desde então ando à cata dos filmes de King Hu), e Dong (aka The Hole), que a espaços gostei mas lembro-me de ter saído dele com as expectativas defraudadas. É certo que os mais badalados e prezados filmes dele ainda não vi mas, somente à custa das melancias, quando o fizer será com será com novo ânimo e interesse. O sabor da melancia continua a não me convencer totalmente mas, em relação aos outros, saí bem mais satisfeito.

Dizia eu, no post sobre o Cypher, que geralmente aprecio os realizadores com mais cuidados nas cenas que nos planos. Pois bem Ming-liang é um realizador que quebra este meu ponto de vista (talvez daí o meu desconforto), para ele um plano é uma cena, e uma cena um só plano (e quando são mais, muito raro, são “simétricos”). A câmara não se move, os planos são geralmente picados e contra picados (os filmes dele são demasiado oblíquos), os diálogos quase não existem e quando surgem parecem irrelevantes. O ritmo dos seus filmes é de difícil assimilação mas, depois de tomarmos o seu pulso, tornam-se hipnótico (nas melhores cenas, claro). No entanto o que mais me fez entusiasmar neste filme terão sido os números musicais que, como já disseram (de forma depreciativa) e concordo, se tornam válvulas de escape à sua austeridade formal.
O filme relata simplesmente o reencontro amoroso entre dois jovens de Taiwan. Ela (Chen Shiang-chiy) de desejos sexuais reprimidos ele (Lee Kang-sheng, actor fétiche de Ming-liang) actor porno. A melancia (ela) e a água (ele) são os elementos afrodisíacos, e metafóricos, dos seus desejos.
Nos números musicais – o isco que me atraiu - são bons (e montados com vários planos, é o ritmo estúpdio, é Hollywood) há um que destaco: o da aranha, da viúva negra, que - trocadilho foleiro - arranha. Mas há outros momentos, extra-musicais, fantásticos no filme (que me reabilitam o interesse nas obras mais aclamadas de Ming-liang), o festim de lagostim – mórbido -, a casa de banho cheia de garrafas de água – desejos no w.c., todos sabemos o que isso é -, os bastidores das cenas porno – a falta de desejo no w.c., poucos saberão o que isso é -, etc, etc, etc (há muitos planos bonitos no filme).
Mas o ponto alto, a cena das cenas, o plano dos planos, o clímax - o momento de suspensão da respiração - é do camandro. E todos engolem em seco, só ela é que não mas, repito, todos engolem. Como nunca viram, spoiler: FELLATIO!

sexta-feira, 5 de outubro de 2007

Invasion of the body snatchers – 1956

A primeira vez que vi os body snatchers foi pela mão/câmara do Abel Ferrara e adorei. Descontando (mas não tanto) o facto de ser um acérrimo fã de Ferrara achei aquela história cheia de potencialidades, daquelas que têm a capacidade de se metamorfosear consoante a época. É certo que vi o filme sabendo que havia duas versões que o antecediam, a de Don Siegel, um clássico sci-fi e que me trás aqui, e a de Phillip Kaufman que é, segundo algumas fidedignas fontes, um excelente remake dos anos 70’s. Este ano virá outra versão de Oliver Hirschbiegel, espero-a ansioso. Remakes e mais remakes, a invasão é também de film snatchers (filmes cada vez com menos alma e mais cínicos, assim espero este remake). É uma história cheia de potencialidades porquê? Porque trata de um invasor exterior que se dissimula no quotidiano de uma comunidade, modificando-a, e isto a meu ver dá pano para mangas, e soutiens labregos. Cingindo-me ao filme de Siegel que, como devem saber, é um grande cineasta, daqueles que filma o essencial, sem grandes parangonas.

Dr. Miles Bennell (Kevin McCarthy) é o doutor retornado à terreola que o viu nascer. Voltou por desgosto amoroso, e lá reencontra a sua namoradinha de infância Becky Driscoll (Dana Wynter). Claro está que mais minuto menos minuto estará um nos braços do outro – estamos no período clássico de Hollywood, querem o quê? Mas com a chegada do retornado vêm também queixas de pessoas que dizem que familiares e vizinhos já não são quem eram. Têm a aparência mas já não têm a alma, as emoções e os feitios que supostamente os caracterizariam. Depois de várias hipóteses levantadas pelo médico e psiquiatra descobrem que algo de terrível brota do solo de cidade e que replica os seus cidadãos.
Siegel nunca nos explica cabalmente a origem dos invasores que se parecem com couves e que, com qualquer efeito espumante, expelem corpos humanos das entranhas para substituir as pessoas que depois, de qualquer modo, são aniquiladas. E é essa substituição que me fascina… porque é que os substituem? Neste filme, assim como na versão de 1993, a “substituição” ocorre aos olhos deslocados. Isto é uma parábola sobre um o retornado Dr. Bennell que quando chega à sua terra natal vê tudo, naturalmente, diferente, nada é como era, nem a namoradinha Becky é a mesma. Daí o seu pânico e desnorte. Todos, aos poucos, vão sendo apanhados e, curiosamente, coincide com o aprofundar das suas relações com eles. Isto é, a visão que ele mantém deles já não coincide com a actual, pois já o tratam como homem e como médico. Pormenor, se calhar errado mas fiquei com essa sensação, a ameaça os invasores são nos quase sempre mostrados em segundo plano, como se o Dr. Bennell estivesse também ele fora do plano, aliás ele não só é o narrador como também o filtro ao nosso preconceito.

Na verdade o filme é praticamente um flashback, só os minutinhos iniciais e finais são do presente. E esse presente dir-me-á que estou completamente errado, que a invasão está de facto a ocorrer, mas o último plano devolve-me o delírio. Pondo os pontos nos ii e jj, Invasion of the body snatchers é uma grande parábola sobre a forma como a realidade se vai metamorfoseando ao nosso olhar.

quinta-feira, 4 de outubro de 2007

Django - 1966

Django (Franco Nero) é um homem que deambula pelo território americano, arrastando consigo um caixão. Django é um morto vivo, a terra é enlameada – a chuva levou o pó -, o western americano já não existe, aqui filma-se o western euro-latino. É certo e sabido que Sergio Leone foi o primeiro a filmar estas reflexões sobre o principal género do cinema americano, não podemos contudo somente cingir-nos a ele. Houve outro Sergio, Corbucci neste caso, que não romantizou tanto a reflexão (Leone “inventou” o western spaghetti por amor ao homónimo americano, parece-me que Corbucci, pelo contrário, explorou a formula por lucro e sem tanta vassalagem à origem americana – fê-lo spaghetti pelo spaghetti - Leone foi romântico Corbucci foi pragmático). O Django não é poeticamente não nomeado (como Eastwood na trilogia dos dólares do Leone), tem nome, tem passado (lutou pelo norte na guerra da secessão), tem cicatrizes (o amor dele morreu), etc. Ou seja não é um novo (anti-)herói que, do nada, se materializa na América é sim um anti-herói que já lá esteve, que foi americano até à sua morte, na guerra, e ficou desde então apátrida (não o dizem no filme digo-o eu).
Django vai então para uma terriola fantasma (só existem pessoas no saloon, só existem pessoas amorais) tentar vingar a morte do seu amor e sacar uma avultada pipa de massa. Jonathan (Gino Pernice) foi aquele que matou a mulher, General Hugo Rodriguez (José Bódalo) é o revolucionário mexicano que precisa dos dinheiros. Jonathan e Hugo não se podem ver, o primeiro lidera uma trupe de racistas (até usam lenços a tapar o rosto), o segundo lidera uma armada em terra de gringos que deles só quer dinheiro e armas para a revolução. Django está então no meio do fogo cruzado entre os dois bandos, assim como a belíssima Maria (Loredana Nusciak), que se tornará o seu amor. Como os fantasmas não se podem matar (só espezinhar - Django fica a certa altura com as mãos em papa), Django e Maria (que “morre” a meio do filme, digo eu) são os únicos que “sobrevivem”.

A última cena é antológica: Django, escudado pelo crucifixo tumular da sua amada, vai eliminar os restos do bando de Jonathan, incluindo-o. Depois no cimo do morro do cemitério vira-se agradecendo a quem, de origem espectral, o protegeu.

Cypher – 2002

Não tendo desgostado do filme de todo confesso que, por preconceito, entrei nele com o pé esquerdo. Vincenzo Natali é daqueles realizadores que deve fazer n storyboards e só deixa o set quando a imagem desenhada foi duplicada na película. Tem ares de perfeccionista. Cypher sofre desse mal, de tão bonito e stylish que quer ser em cada plano esquece-se da cena em si. Eu tenho para mim que o mais importante num filme é a cena e nunca um plano (é claro que se se sacar um ou outro plano de se lhe tirar o chapéu, tanto melhor) mas, como tudo, há realizadores e realizadores, filmes e filmes, jogadores do Porto e jogadores do Porto. Portanto, pondo os talheres e os pratos limpos: Natali não é do meu género de realizadores.
Mas como disse primeiramente não desgostei do filme. Ao contrário do Cube - anterior filme de Natali, que, quase aposto, originou a ainda mais abortiva série Saw, e daí o meu preconceito inicial – o enredo tem alguma piada. Não querendo explicar os quiproquós da narrativa – sabem é daqueles sci-fis que está sempre a revolver-se, é isto, é aquilo é aqueloutro –, que até poderei não ter assimilado completamente, uma coisa clara sobressai dele. Morgan Sullivan (Jeremy Northam) é um homem inicialmente estafado com a sua vida caseira (a mulher é o homem lá de casa) que, ao longo do filme, vai mudando de pele, tornando-se num gajo cool (toda a alminha cinéfila sabe o seu sinónimo: agente secreto) que no final fica com a amante, ou melhor, com a mulher dos seus sonhos. Basicamente o filme é isto: a concretização do sonho de um gajo de meia-idade. Aquelas historietas das corporações secretas que controlam toda a sociedade, o ser-se Sullivan depois Tugsby depois o que quer que seja, é tudo conversa da treta porque não há tempo, nem vontade, para as explorar convenientemente. E ainda bem que não há porque Natali parece não ter estofo para tal. E portanto fiquemo-nos pelo mais simples, e o melhor do filme, repetindo: Sullivan, homem de meia-idade, vai-se ver livre dos seus pesadelos, e da “pain in the neck”, que é a megera caseira para ir ter com a mulher do iate.

Quai des Orfèvres – 1947

Os franceses começaram a construir uma enorme reputação nos filmes policiais desde cedo. Este Quai des Orfèvres tem reputação de clássico, do cinema francês no geral, e do cinema policial, seja francês ou norueguês, em particular. Percebe-se claramente porquê, tudo nele é medido com precisão e cosido com elegância de alfaiate. O alfaiate é Henri Georges-Clouzot homem de curta filmografia mas com o igualmente extraordinário Les Diaboliques no currículo. Vejamos então, Georges Brignon (Charles Dullin), velho jarreta, é assassinado em sua casa e, como António Rodrigues da cinemateca muito bem referia, o par de protagonistas sente culpas, cada um por si, pela sua morte. Maurice (Bernard Blier), o marido, queria ver-se livre dele por ciúmes, Jenny Lamour (Suzy Delair), a mulher, também o queria desaparecido para não ver Maurice consumido por ciúmes. A vida do velho irá consumi-los tanto como a sua morte.
O inspector Antoine, veterano de guerra com um filho preto das colónias (Louis Jouvet, actor que desconhecia mas parece que foi grande em França, e por esta actuação bem merece), vai então tentar encostar cada um deles à parede. À medida que a noite de Natal se aproxima o cerco policial vai-se fechando sobre o par de protagonistas, que sentem já não ter escapatória apesar da sua inocência. É então que na noite de Natal o assassinato, por milagre, é transferido para um criminoso em fuga, que o confessa - concordo até que essa transferência surja um pouco forçada, mas não deixa, para católico, de tudo fazer sentido. A intriga também envolve a amiga Dora (bela Simone Renant) que também quererá acarretar as culpas da morte porque não aguenta a possível prisão de Jenny Lamour (tirem as ilações).
Mas todo o filme é excelente garanto-vos. Todas as personagens “respiram”, têm tempo de antena, têm dilemas, dúvidas, fraquezas, têm “corpo”. Clouzot filma muito bem Paris, uma Paris nocturna, coberta de neve, e também uma Paris de interiores, a esquadra, teatros decadentes, etc. Para quem gosta de filmes policiais com classe (tratando o filme até de personagens de classe baixa), este será um verdadeiro festim.

terça-feira, 2 de outubro de 2007

Superbad vs. O capacete dourado (2007)

Dois filmes que, pela proximidade com que os vi (estrearam na mesma semana e tudo), me parecem encaixar um no outro. São a face oposta da mesma moeda. A “moeda” aqui é a tentativa de tirar um retrato à juventude, ou melhor, às memórias juvenis dos seus autores. Capturar o momento onde nos apercebemos da irreversibilidade, momento onde no nosso vocabulário começará a surgir com frequência a palavra ontem (se é que tal momento existe, a meu ver é uma questão de românticos). Coloco-os então em faces opostas porque o filme americano opta pela comédia enquanto o português opta pela tragédia, não deixando ambos de tocar na face oposta.

Superbad, de Greg Mottola, é uma comédia sobre um dia, o último dia, na vida de um trio de outsiders liceais americanos, Seth (Jonah Hill) Evan (Michael Cera) Fogell (Christopher Mintz-Plasse), três excelentes actuações. Três miúdos que tentam ser o mais bacano possível perante os olhos dos outros dois. Desde a chegada matinal à escola até à festa nocturna muita água vai correr, muitas tentativas de afirmação vão ocorrer e muitas ilusões irão acabar.
O filme foi escrito por Evan Goldberg e Seth Rogen (reparem no nome de dois dos miúdos) que começam a evidenciar, este último pelo menos, uma clara linha de produção (ou tiques de autor). Os 3 últimos filmes por ele protagonizados, pelo que sei, recaem sobre o tema da imaturidade, homens que não querem nem conseguem encaixar no encaixe que lhes é devido (40 year old virgin, Knocked up). Repare-se então nos graúdos que rodeiam aqueles três miúdos: os acriançados polícias, as claras semelhanças entre a festa dos graúdos e a festa dos miúdos, a irresponsabilidade dos empregados da liquor store, etc. São todos adultos que não se sentem bem no mundo adulto, tal como os miúdos que não querem entrar nele. De certa forma os argumentistas Seth e Evan escreveram aqueles miúdos num universo infantilizado. Há um diálogo entre os polícias e Fogell que expõe claramente as coisas. O homem diz que queriam dar uma imagem a Fogell de que eles, adultos, também podem ser “à maneira”. E esse à maneira é, basicamente, portarem-se ridiculamente como crianças à sua frente. Fogell, não querendo lançar certezas, parece até ser um amigo imaginário de Seth e Evan argumentistas (é o mais outsider das três crianças) criado para ser o bode expiatório de várias situações, sejam elas boas ou más. Mas no final são eles Seth e Evan, os melhores amigos, que, à homenzinhos, tomam atitudes responsáveis.
O filme está carregado de calão, asneiradas e conversas de chacha (o Tarantino vincou forte e feio algum cinema americano). Está também orgulhosamente cheio de testosterona, misoginia e infantilidades (à lá Porky’s e American Pie, mas sem o insuportável conservadorismo onde, pelo menos o American Pie, acabaria por cair), não optando pelo caminho dos recentes e inconsequentes indies (Chumbscruber, Thumbsucker, Brick) que, de tal forma delicados, não são desavergonhados.

Capacete Dourado, de Jorge Cramez, por seu lado, é claramente um filme de um romântico (Superbad também é, mas há demasiados complexos para o assumir). Onde tudo, desde os motoqueiros fantasmas iniciais aos tumultos aquáticos finais, tende para a tragédia. Jota é um jovem motoqueiro, também ele um outsider, mas bem integrado entre a malta das motas. É mais um outsider visto pelos adultos. É o rebelde que dissemina indisciplina entre os colegas. Mas Jota é também um rapaz que, pela consequência dos seus actos, carrega o fardo da morte.
Apesar de alguns momentos algo elaborados de mais (em contraste com o Superbad, aqui há demasiada encenação nos planos) o filme consegue a espaços comover. Cramez, nas entrevistas que li dele, chama a si o periodo technicolor de hollywood, James Dean, rebeldes sem causa, etc, assim como a geração que o antecede no cinema, Teresa Villaverde, Manuel Mozos, Joaquim Leitão, mas faz demasiada questão nisso, e é pena. Muitas vezes soa a referência sobre referência, a memória sobre memória e as personagens deixam de lá estar, a história suspende-se, para caprichos de autor. No filme há de facto quebras dessas que resultam e comovem (a cena da dança nos anos, a disputa das motas) mas há outras que ficam naquele limbo, ficam ali atravessadas. Isto faz de Capacete Dourado um mau filme? Nada disso, até porque os momentos trágicos quando resultam são fortes. Muito ajudam também o par de protagonistas, especialmente Eduardo Frazão

E porquê de o versus no título do post… não sei… São dois filme que até casam bem por abordarem de forma totalmente oposta a mesma temática, opostos formalmente (na comédia a cena é mais importante que o plano, na tragédia o plano é tão importante quanto a cena) opostos narrativamente (na comédia uma história de amizade entre dois, na tragédia uma história de amor.) Mas no fim ambos falam de algo que se perdeu.

Ahh… o versus pode-se pôr em relação à banda sonora (essencial nos dois filmes). E assim o Superbad ganha aos pontos, numa banda sonora carregada de funk.