terça-feira, 13 de novembro de 2007

Rescue Dawn

Werner Herzog, pertencente à quase extinta casta de realizador castiços, que antes eram norma e lei atrás das câmaras, está sempre pronto a filmar pedaços extraordinários de vida de alguns homens que passaram pelas mais estranhas vivências possíveis. Em Little Dieter needs to fly, documentário, que nunca vi, antecedente a este filme, Herzog narrou as aventuras de Dieter Dengler, alemão nacionalizado americano, que serviu os E.U.A. como piloto de aviação na guerra contra o Vietname. Gosto de pensar que ambos os filmes de Herzog ganham bastante com uma visão conjunta. No entanto só me posso pronunciar sobre Rescue Dawn. E é, sem espinhas, um dos melhores filmes estreados neste ano.
O que é espantoso no filme, além das excelentes actuações do trio Bale, Zhan e Davies, é a forma como Herzog usa a câmara, mais concretamente as panorâmicas. Tirando a parte central do filme, centrada no campo prisional, onde ocorrem as mais importantes elipses temporais do filme (o desgaste nas personagens é notório, e notável em subtileza, de cena para cena), as partes que ensanduicham esse centro correspondem ao olhar subjectivo da floresta sobre Dieter. E, a espaços, o olhar de Dieter sobre a floresta. Após o escape há uma cena espantosa: depois de uma longa caminhada, Dieter, arrastando aos ombros Duane, pára a certa altura e exclama algo como “Look, it’s a village!”, Duane olha em redor e o desalento diz “It’s just forest”, a câmara, numa panorâmica, dá-nos a ver a razão da exclamação de um e do desalento do outro. Estão ambos correctos, o velho dilema optimismo pessimismos (dilema Dieter Herzog?) A força da cena faz-me lembrar que, até ali, o filme já nos deu outras panorâmicas (se não panorâmicas outros planos sequência semelhantes) que não serão só descritivas mas sim estados de espírito. Pouco a ver com o universo de Malick, apesar de não o rejeitar, repare-se na cena em que Dieter vê Duane, já morto, entre a densa folhagem, Herzog é um pragmático. Contudo nunca anula o olhar do seu protagonista. Little Dieter sonha em voar (os americanos aproveitaram-se desse sonho para o pôr a combater), e isso implica sobreviver cá em baixo.

Heartbreak Kid

Pouca coisa a dizer... é pena, pois os irmãos Farrelly já foram mais javardos. E a javardice à lá Farrelly, não tendo muito que se lhe diga, tem muita piada.
Ben Stiller, habitué nestas coisas, continua a ter classe nas típicas banalidades narrativas dos Farrelly. Mas com essa banalidade os Farrelly já fizeram grandes comédias. Contudo as piadas, apesar de até ter algumas bem esgalhadas (a ‘blonde pussy with a life of her own’ é a rainha delas), na maioria já não têm a frescura necessária.
Apesar do deslize, até porque o filme não é tão mau quanto isso, eu ainda deposito nos Farrelly Bros. alguma esperança, porque, para além da comédia americana precisar urgentemente de alguma iconoclastia, foram eles que deram ao descontrole do agora moribundo Jim Carrey o melhor dos rumos.

domingo, 11 de novembro de 2007

Highwaymen – 2003

Robert Harmon nunca me convenceu cabalmente. The Hitcher é de facto um bom filme mas percebe-se o porquê de nunca ter rebentado para além do culto que o encerra. Em Highwaymen é clara a tentativa de Harmon voltar ao território em que foi feliz, ou pelo menos que lhe deu reconhecimento. Ou seja aqui há suspense e carros. Desmembrando o filme nessas duas vertentes: o suspense nas sequências com carros é muito bom (talvez a única coisa boa do filme); o suspense sem carros é tanga (isto para nem falar da suposta tragédia que é a vida daquelas personagens, que é tanga XXL). Tudo o que nos é dado, para além das sequências com os carros, é um completo inventário de ideias feitas (sem um rasgo de sentido de humor): diálogos irritantes que vão abolindo o nosso sentido de intuição; flashbacks risíveis (alguns a preto e branco, outros em câmara lenta, outros em câmara rápida, é ao gosto do freguês); actuações mortiças, não há espaço para o humor, puxa!, afinal são todas personagens traumatizadas; tudo sob o mais chato de todos os defeitos, os planos meticulosamente estudados que nos dão constantemente o sentido da sua encenação (eu ainda sou daqueles que acredita nas palavras de Wes Craven, apesar de o próprio, na prática, já se ter contrariado, um realizador de terror tem de fazer passar a sensação de que é louco). Ahhhh… e o vilão? Quando ainda é só o carro tudo bem, mas quando o homem sai de lá de dentro é inevitável o seu aspecto fragilizar a ameaça que o filme quer manter até ao fim e só nos lembramos da imponência de John Ryder (o sempre espantoso Rutger Hauer) em The Hitcher (ok, a ideia de Harmon foi mesmo essa, a de nos dar esse contraste da carcaça frágil daquele homem sem o carro, percebo… mas…) Portanto, do filme guardarei na memória (pelo menos até às 14:22 de amanhã) as, pelo menos, três excelentes sequências de perseguição. São o único mimo num filme sem eira nem beira.

Never say… never mind – 2001

Asa, Erika, Gunnel, Vendela e Helga, a equipa de biquíni sueca, trabalham para Mr. Blue, arquitecto de missões subterrâneas, com o intuito de salvar o mundo de ataques terroristas, e outros que tais. As 5 suecas, uma delas morre... na amazónia… engolida por uma planta devoradora de… mulheres suecas (a melhor cena do filme, recheado de muitíssimos pontos altos e, diga-se, nenhum baixo). Dizia eu que as 5 conseguem conciliar a sua carreira de espias com a de júris em concursos internacionais de equipas de biquínis, assim como manter uma saudável imagem de role models sociais (outra cena de génio... anotem o nome, no papel higiénico mais à mão, Buzz Feitshans IV). O filme opta por explorar a vertente de espionagem (não que eu a achasse a mais interessante mas do mal o menos) e, sob as ordens do Mr. Blue, as belas e torneadas suecas têm de desmantelar uma organização que, como sabem, pretende qualquer coisa maléfica contra a humanidade em benefício próprio (na verdade já não me lembro da intriga). Mas o que é que isso interessa?
Elas são a verdadeira mão que estabelece a ordem (James Bond anda nisto à anos e não sai da cepa torta, aliás parece que só piora as coisas) com os seus gadgets temíveis (telemóveis que lançam raios provocadores de náuseas e vómitos) e poder de sedução estonteante (garanto-vos que a mais heterossexual das mulheres não resistiria aos seus charmes, ok, a Erika tem os seus defeitos fora de uma discoteca fumarenta às 3 da manhã mas é só...) O mundo está a salvo… se não o mundo pelo menos a hora e meia de filme.

sexta-feira, 9 de novembro de 2007

Rubber Johnny – 2005

A aliança Chris Cunningham Aphex Twin nunca deu errado. Rubber Johnny (não é difícil encontrá-lo no youtube) é mais uma prova nesse sentido, aliás é o seu apogeu (ok, também há o Come to Daddy, tão ou mais perturbador). Quem depois daqueles eléctricos e estranhíssimos 6 minutos não sentir um estímulo, de qualquer ordem ou grandeza, no encéfalo ou é feito de madeira ou de papel celofane. Rubber Johnny é uma pílula de estímulo criativo.

quinta-feira, 8 de novembro de 2007

.45 – 2006

Kat (Milla Jovovich) é a mulheraça que Big Al (Angus MacFadyen) gosta de exibir em público, e a boneca de farrapos que gosta de esfrangalhar em privado. Kat gosta do estatuto, não só porque ele tem um humongous dick, e isto é importante porque ela tem um voraz apetite sexual, vai com homens, mulheres e o que mais houver, mas também porque, coisa de mulheres, se sente protegida com ele. Nem a sua grande amiga lésbica, Vic (Sarah Strange), a consegue convencer que com ele não vai longe. Será preciso que surjam mais dois indivíduos, Reilly e Liz, para que a façam ver, e aceitar, que aquela vida ninguém a merece. Reilly (Stephen Dorff) promete-lhe que, com ele, sairão dali para novas paragens mais atraentes, Liz (Aisha Tyler) deseja que ela deixe aquela vida miserável e se torne noutra pessoa, como ela se tornou, pois também teve um passado de abuso doméstico de que se conseguiu libertar. Mas Kat já não está para aí virada. Aceitando a mudança que lhe propõem Kat vai tomar o touro pelos cornos. Arquitecta um plano para entalar Big Al. Esse plano engloba a conivência os três que amam. No final não fica com nenhum, a decisão de se livrar de Big Al foi também a decisão de mudar de vida.
Não há muito para contar para além deste resumo. É um filme com mais ambição que força dramática. Ao contrário do que se tem dito por aí (incluindo o Paulo Portas) não achei a interpretação de Milla Jovovich nada de especial, contudo concordo que ela na cena de violência doméstica vai muito bem, e a cena no geral é muito boa, de gelar o sangue, ou pelo menos torná-lo um pouquito mais espesso.

Dentro dos filmes de vingança feminina o The Brave One vai melhor. Gary Lennon, o realizador do filme, para a próxima que implore ao produtor a Jodie Foster, e assim pelo menos terá um terço do filme feito.

Ahh... os trapinhos que a Milla usa são bem funqui.

The Brave One – 2007

Erica Bain (Jodie Foster) mulher feliz com a vida, radialista nova-iorquina (tem um programa curioso que eu ouviria caso alguém o fizesse por cá) e apaixonadíssima pelo seu namorado. Certa noite ela e o seu namorado são espancados num túnel de Central Park. Ela sobrevive, ele não. Depois de regressar do coma Erica Bain vai desenvolver dentro de si dois sentimentos que até então não dera conta de os ter. Inicialmente surge-lhe o medo da cidade que tantas vezes escutou (é nisso que consiste o seu programa de rádio escutar e dar a escutar Nova Iorque). Mais tarde esse medo vai-se camuflando em vingança, não vingança da cidade mas sim das pessoas que a contaminam. Erica Bain vai até andar por locais que antes nunca julgaria andar para encontrar os tais vírus que corroem o interior da sua paixão, Nova Iorque (ou mais foleiro-poeticamente falando, que corroem o interior do seu exterior), se encontrar os bandidos responsáveis pela morte do seu então noivo tanto melhor.
Erica Bain, contudo, não deixou esvaziar a sua moralidade, ela sente que o que faz não é correcto. Fá-lo por medo, por instinto básico, por sanidade. Quando se confronta com o detective Sam Mercer (Terrence Howard) só não se descose toda porque, na sua natureza, o instinto de sobrevivência vem ao de cima. Erica tem consciência dos seus actos e sabe que a sua moral permanece correcta mas nada pode contra os seus instintos básicos.

O grande erro de Neil Jordan, realizador, foi ter filmado uma cena que descredibiliza muitas que depois a sucedem. Erica Bain, pouco após ter acordado do coma, com escoriações na face e de olhar acossado, responde à frase feita ‘eu sei o que deve estar a sentir’, do polícia que a interroga, com um ríspido ‘do you?’. E na cena seguinte, mais coisa menos coisa, Neil Jordan aparece-nos a fazer uns efeitos de câmara simulando efeitos de vertigem num corredor, vemos e ouvimos o ‘fantasma’ do namorado de Erica sentado à cama, há até uma cena de sexo fantasiada. E eu que na excelente cena do ‘do you?’ pensei que Jordan iria optar por um retrato frio daquela personagem…

Agora diga-se Jodie Foster é excelente, sempre foi, pelo menos no retrato das mulheres “masculinizadas”, a profissão de Erica Bain, e o seu programa, é um achado (seria seu ouvinte certamente), o poster do filme à lá 70’s é um dos melhores do ano (tanto este que vos mostro como aquele que chegou a Portugal), e o plano final é também muito bom (eu tenho um fascínio por planos finais, tenho para mim que deve ser o plano mais difícil de escolher/encaixar num filme). Ela com o cão passa, de noite, pelo túnel que viu morrer o seu namorado. Erica ‘reconciliou-se’ com a sua ‘nova’ paixão, Nova Iorque ('nova' porque há uma Nova Iorque antes e depois da agressão.)

Petrified Forest – 1936

Este filme de Archie Mayo deve muita da sua fama à presença, no seu primeiro grande papel de destaque, de Humphrey Bogart. E de facto o homem rouba o protagonismo do filme, e só aparece a meio. Alan Squier (Leslie Howard), escritor, andarilho, romântico on the road em busca de algo no mundo que o faça dizer “worth to dying for”. Gabrielle Maple (Bette Davis, já a dar cartas como leading star) é uma jovem moça, presa na estação de serviço do pai (a estação de serviço tem um nome e pêras, Bar-B-Q), no meio do deserto em Petrified Forest, Arizona, e sonha viajar para França, onde está a mãe. Alan, por casualidade, vai ter à estação de serviço do pai de Gabrielle e, ele e ela, apaixonam-se…
Duke Mantee (grande nome de personagem, grande Bogart que tem um close-up semelhante ao do John Wayne no Stagecoach, de John Ford, vocês sabem daqueles que faziam deles estrelas) é, na primeira parte do filme, notícia. Fugiu da prisão ajudado por três rufias. Na segunda parte também vai parar à estação de serviço onde, além de fazer reféns um punhado de personagens, incluindo Alan e Gabrielle, esperará a chegada da sua namorada, para juntos atravessarem a fronteira para o México.
Alan propõe então a Duke, na ausência de Gabrielle, que o mate. Afinal de contas ele já encontrou a razão “worth to dying for”, e com as notinhas do seu seguro de vida pode pagar a viagem de sonho a Gabrielle. É certo que o argumento é demasiado rebuscado (e o Leslie Howard não convence) mas eu, da Hollywood clássica, papo quase tudo, especialmente porque os argumentistas daquele período sabiam-na toda.
Reparem só, Duke Mantee enquanto espera e espera pela namorada ouve as mais variadas histórias dos reféns, o gajo que quer namorar com Gabrielle, e que ela o despreza por ser demasiado redneck, o avô de Gabrielle que vive fascinado com os fora-da-lei, um casal de ricaços com um casamento de fachada, o pai de Gabrielle, homem íntegro, de princípios impolutos, e especialmente o romantismo e pragmatismo exacerbado de Alan, além de também ter que levar com as conversas dos seus colegas rufias. Quando no final Duke se apercebe que o estamine está rodeado de polícias e que a sua namorada, muito provavelmente, o denunciou, ou pelo menos as vozes dos seus colegas rufias assim o dizem, Duke hesita em atirar sobre Alan, afinal de contas ele é o único ali que pode viver um romance decente. Mas este impede-o de escapar se não o fizer e, num momento de amargura, Duke atira sobre Alan. Basta este momento para me convencer que estou a ver grande cinema. Artificioso até à medula, no argumento e até na linha do horizonte, que é de papelão, mas genuíno nas emoções e nos conflitos.
Naquele tempo, sem grandes artifícios, aliás, por falta deles, aguentavam com uma perna atrás das costas quase todo um filme dentro de uma gas station, isto deveria incomodar e muito os argumentistas actuais, que agora parecem estar em greve... do mau o menos...

Ahhh... já vos disse que Duke Mantee é nome para ser tatuado na língua?

terça-feira, 6 de novembro de 2007

Oz – 1997-2003

Acabou-se a papa doce. Na madrugada desta terça-feira a Sic Radical transmitiu o último episódio da última série de Oz. Segui-a religiosamente, no máximo perdi 2 ou 3 episódios no conjunto de todas as séries, e valeu muito a pena. As três primeiras séries elevaram muito a qualidade o material. Os socos no estômago eram constantes. Depois vamo-nos apercebendo das manhas, como seria de esperar, mas raras vezes nos confortamos com a suposta moral das acções das personagens. Temos que, em seco, aprender a aceitá-las, por mais incompreensível que nos pareçam.
Raras a vezes somos levados para fora da penitenciária Oswald “Oz”, portanto, e o princípio da série é este, caso queiramos permanecer numa prisão lotada com n personagens, que lá fora não souberam respeitar a liberdade alheia, temos que as aceitar tal como elas são, totalmente diferentes de nós na aparência e muitas vezes na sua humanidade. Tom Fontana, criador da série, a HBO e todos os guionistas envolvidos merecem todos os elogios que se lhes possam fazer em relação a Oz, porque foi, e é, um verdadeiro trabalho de músculo, inteligência e sanidade. Aguentar em tão reduzido espaço (e daí a importância dele) dezenas de intrigas e conflitos, nunca maçadores e quase sempre credíveis, é de tirar o fôlego. Muita dessa urgência deve-se à realização dos episódios que parecem herdeiros dos filmes de série b de prisões. Câmara muito próxima das personagens, efeitos especiais manhosos (maioritariamente nos flashbacks, o que faz todo sentido, já que aquilo não era bem sair da prisão), e a exploração da violência como clímax na maior parte das situações. E, claro, os personagens e os actores… tremendo casting. Alvarez, Burr, Saiid, Beecher, Keller, Hoyt, Adebisi, Schillinger, McManus, O’Reilly, Leo Glynn, etc, etc, etc. Vénias e mais vénias.

Oz é também, e sobretudo, um grandioso esforço sobre a abolição da intolerância, do racismo, dos “limites” do humano. Fazê-lo numa prisão, nicho de marginais e foras-da-lei, torna a ambição mais desmesurada.

Anos mais tarde, após o início de Oz, a HBO começou a produzir os Sopranos. E se os Sopranos estenderam em muito os limites da ficção televisiva mainstream americana muito o devem a Oz que, andando no limiar da imoralidade e da brutalidade (e resvalando para lá, por vezes), raras vezes pareceu gratuito.

segunda-feira, 5 de novembro de 2007

When the levees broke – 2007

Spike Lee nunca foi, nem nunca pretendeu ser, subtil nos seus filmes. O punho está sempre em riste e a língua sempre afiada. Neste documentário essa atitude mantém-se.
Este Joint de Spike Lee, co-produzido para a cadeia televisiva HBO, tem como subtítulo A requiem in four acts. Os 4 actos, 4 episódios de uma hora cada, têm a função de nos mostrarem 4 diferentes etapas das consequências do furacão Katrina que desfigurou Nova Orleães. Filme essencialmente estruturado em entrevistas às mais variadas pessoas que, de uma forma ou de outra, estiveram ligadas ao acontecimento, imagens de arquivo, essencialmente televisivas, e imagens recolhidas pelo próprio no local, Lee faz um apanhado das diferentes fases das consequências do furacão naquela cidade.
O primeiro acto é dedicado às memórias pré Katrina. Composto maioritariamente por entrevistas e imagens de arquivo Spike Lee faz um retrato da cidade, e das gentes, quando lhes soou o alarme da vinda do furacão. O que torna este acto o mais emotivo dos 4 porque as entrevistas ocorreram, como é óbvio, após a catástrofe. Conseguimos ler nos rostos das pessoas, ao recordarem-se do que lhes aconteceu antes da chegada do furacão, a perda, o sofrimento, o recorrente there’s no place like home, que lhes afecta naquele momento. Muitos não se preveniram por casmurrice, outros por falta de meios, mas o que trespassa realmente em todos eles é a dor de saber que houve um antes.
O segundo acto dedica-se ao momento imediatamente a seguir à calamidade. As imagens de arquivo das inundações, os mortos abandonados, etc. É o acto mais chocante, aquele em que nos é arremessado à cara aquilo que a televisão não mostra. É certo que a maioria das imagens é de origem televisiva, mas Spike Lee não tem que se preocupar com horários prime time ou de outra ordem. As consequências do furacão foram chocantes, o que torna mais agonizante o abandono inicial a que aquelas pessoas foram deixadas, não só por parte do governo mas de n entidades, começando pelas responsáveis pelo dique que cedeu inundando quase toda a cidade.
O terceiro acto ocupa-se das primeiras acções consequentes por parte do governo de Bush. É neste acto, e no anterior, que Spike Lee mais escarafuncha na ferida. E fá-la sangrar. O inicial virar da cara de Bush é tão incómodo quanto o início das suas acções porque, muitos o dizem, teve que as tomar por já não ser possível virar mais o pescoço. Há famílias separadas, há motins constantes, há ruas devastadas, há mortos nas ruas, etc. Tudo por fazer.
O quarto acto ocorre passado um ano do Katrina, época do Mardi Gras. Os avanços para a reconstrução da cidade ainda são escassos, a burocracia é muita, os seguros esquivam-se como podem, a construção de um novo dique não é consensual, etc. Viraram a cara enquanto puderam mas não evitaram a sua desfiguração. A cidade com a mais pujante vitalidade negra norte-americana já não é reconhecível por aquelas gentes. Nova Orleães morreu, que se faça então o funeral.

Todos os actos fluem sob a emotiva/fantástica banda sonora de Terence Blanchard (mas quem é que ainda não notou que ele é um dos melhores compositores de banda sonoras da actualidade?), encerrados ao som da Walking to New Orleans de Fats Domino.

Vi o filme no DocLisboa em quatro horas contínuas (ok, houve um intervalo de 15 minutos) que o tornaram mais devastador. O efeito de condensar em imagens uma tragédia real numa tela de cinema (ainda) é esmagador.