terça-feira, 13 de novembro de 2007

Rescue Dawn

Werner Herzog, pertencente à quase extinta casta de realizador castiços, que antes eram norma e lei atrás das câmaras, está sempre pronto a filmar pedaços extraordinários de vida de alguns homens que passaram pelas mais estranhas vivências possíveis. Em Little Dieter needs to fly, documentário, que nunca vi, antecedente a este filme, Herzog narrou as aventuras de Dieter Dengler, alemão nacionalizado americano, que serviu os E.U.A. como piloto de aviação na guerra contra o Vietname. Gosto de pensar que ambos os filmes de Herzog ganham bastante com uma visão conjunta. No entanto só me posso pronunciar sobre Rescue Dawn. E é, sem espinhas, um dos melhores filmes estreados neste ano.
O que é espantoso no filme, além das excelentes actuações do trio Bale, Zhan e Davies, é a forma como Herzog usa a câmara, mais concretamente as panorâmicas. Tirando a parte central do filme, centrada no campo prisional, onde ocorrem as mais importantes elipses temporais do filme (o desgaste nas personagens é notório, e notável em subtileza, de cena para cena), as partes que ensanduicham esse centro correspondem ao olhar subjectivo da floresta sobre Dieter. E, a espaços, o olhar de Dieter sobre a floresta. Após o escape há uma cena espantosa: depois de uma longa caminhada, Dieter, arrastando aos ombros Duane, pára a certa altura e exclama algo como “Look, it’s a village!”, Duane olha em redor e o desalento diz “It’s just forest”, a câmara, numa panorâmica, dá-nos a ver a razão da exclamação de um e do desalento do outro. Estão ambos correctos, o velho dilema optimismo pessimismos (dilema Dieter Herzog?) A força da cena faz-me lembrar que, até ali, o filme já nos deu outras panorâmicas (se não panorâmicas outros planos sequência semelhantes) que não serão só descritivas mas sim estados de espírito. Pouco a ver com o universo de Malick, apesar de não o rejeitar, repare-se na cena em que Dieter vê Duane, já morto, entre a densa folhagem, Herzog é um pragmático. Contudo nunca anula o olhar do seu protagonista. Little Dieter sonha em voar (os americanos aproveitaram-se desse sonho para o pôr a combater), e isso implica sobreviver cá em baixo.

Heartbreak Kid

Pouca coisa a dizer... é pena, pois os irmãos Farrelly já foram mais javardos. E a javardice à lá Farrelly, não tendo muito que se lhe diga, tem muita piada.
Ben Stiller, habitué nestas coisas, continua a ter classe nas típicas banalidades narrativas dos Farrelly. Mas com essa banalidade os Farrelly já fizeram grandes comédias. Contudo as piadas, apesar de até ter algumas bem esgalhadas (a ‘blonde pussy with a life of her own’ é a rainha delas), na maioria já não têm a frescura necessária.
Apesar do deslize, até porque o filme não é tão mau quanto isso, eu ainda deposito nos Farrelly Bros. alguma esperança, porque, para além da comédia americana precisar urgentemente de alguma iconoclastia, foram eles que deram ao descontrole do agora moribundo Jim Carrey o melhor dos rumos.

domingo, 11 de novembro de 2007

Highwaymen – 2003

Robert Harmon nunca me convenceu cabalmente. The Hitcher é de facto um bom filme mas percebe-se o porquê de nunca ter rebentado para além do culto que o encerra. Em Highwaymen é clara a tentativa de Harmon voltar ao território em que foi feliz, ou pelo menos que lhe deu reconhecimento. Ou seja aqui há suspense e carros. Desmembrando o filme nessas duas vertentes: o suspense nas sequências com carros é muito bom (talvez a única coisa boa do filme); o suspense sem carros é tanga (isto para nem falar da suposta tragédia que é a vida daquelas personagens, que é tanga XXL). Tudo o que nos é dado, para além das sequências com os carros, é um completo inventário de ideias feitas (sem um rasgo de sentido de humor): diálogos irritantes que vão abolindo o nosso sentido de intuição; flashbacks risíveis (alguns a preto e branco, outros em câmara lenta, outros em câmara rápida, é ao gosto do freguês); actuações mortiças, não há espaço para o humor, puxa!, afinal são todas personagens traumatizadas; tudo sob o mais chato de todos os defeitos, os planos meticulosamente estudados que nos dão constantemente o sentido da sua encenação (eu ainda sou daqueles que acredita nas palavras de Wes Craven, apesar de o próprio, na prática, já se ter contrariado, um realizador de terror tem de fazer passar a sensação de que é louco). Ahhhh… e o vilão? Quando ainda é só o carro tudo bem, mas quando o homem sai de lá de dentro é inevitável o seu aspecto fragilizar a ameaça que o filme quer manter até ao fim e só nos lembramos da imponência de John Ryder (o sempre espantoso Rutger Hauer) em The Hitcher (ok, a ideia de Harmon foi mesmo essa, a de nos dar esse contraste da carcaça frágil daquele homem sem o carro, percebo… mas…) Portanto, do filme guardarei na memória (pelo menos até às 14:22 de amanhã) as, pelo menos, três excelentes sequências de perseguição. São o único mimo num filme sem eira nem beira.

Never say… never mind – 2001

Asa, Erika, Gunnel, Vendela e Helga, a equipa de biquíni sueca, trabalham para Mr. Blue, arquitecto de missões subterrâneas, com o intuito de salvar o mundo de ataques terroristas, e outros que tais. As 5 suecas, uma delas morre... na amazónia… engolida por uma planta devoradora de… mulheres suecas (a melhor cena do filme, recheado de muitíssimos pontos altos e, diga-se, nenhum baixo). Dizia eu que as 5 conseguem conciliar a sua carreira de espias com a de júris em concursos internacionais de equipas de biquínis, assim como manter uma saudável imagem de role models sociais (outra cena de génio... anotem o nome, no papel higiénico mais à mão, Buzz Feitshans IV). O filme opta por explorar a vertente de espionagem (não que eu a achasse a mais interessante mas do mal o menos) e, sob as ordens do Mr. Blue, as belas e torneadas suecas têm de desmantelar uma organização que, como sabem, pretende qualquer coisa maléfica contra a humanidade em benefício próprio (na verdade já não me lembro da intriga). Mas o que é que isso interessa?
Elas são a verdadeira mão que estabelece a ordem (James Bond anda nisto à anos e não sai da cepa torta, aliás parece que só piora as coisas) com os seus gadgets temíveis (telemóveis que lançam raios provocadores de náuseas e vómitos) e poder de sedução estonteante (garanto-vos que a mais heterossexual das mulheres não resistiria aos seus charmes, ok, a Erika tem os seus defeitos fora de uma discoteca fumarenta às 3 da manhã mas é só...) O mundo está a salvo… se não o mundo pelo menos a hora e meia de filme.

sexta-feira, 9 de novembro de 2007

Rubber Johnny – 2005

A aliança Chris Cunningham Aphex Twin nunca deu errado. Rubber Johnny (não é difícil encontrá-lo no youtube) é mais uma prova nesse sentido, aliás é o seu apogeu (ok, também há o Come to Daddy, tão ou mais perturbador). Quem depois daqueles eléctricos e estranhíssimos 6 minutos não sentir um estímulo, de qualquer ordem ou grandeza, no encéfalo ou é feito de madeira ou de papel celofane. Rubber Johnny é uma pílula de estímulo criativo.

quinta-feira, 8 de novembro de 2007

.45 – 2006

Kat (Milla Jovovich) é a mulheraça que Big Al (Angus MacFadyen) gosta de exibir em público, e a boneca de farrapos que gosta de esfrangalhar em privado. Kat gosta do estatuto, não só porque ele tem um humongous dick, e isto é importante porque ela tem um voraz apetite sexual, vai com homens, mulheres e o que mais houver, mas também porque, coisa de mulheres, se sente protegida com ele. Nem a sua grande amiga lésbica, Vic (Sarah Strange), a consegue convencer que com ele não vai longe. Será preciso que surjam mais dois indivíduos, Reilly e Liz, para que a façam ver, e aceitar, que aquela vida ninguém a merece. Reilly (Stephen Dorff) promete-lhe que, com ele, sairão dali para novas paragens mais atraentes, Liz (Aisha Tyler) deseja que ela deixe aquela vida miserável e se torne noutra pessoa, como ela se tornou, pois também teve um passado de abuso doméstico de que se conseguiu libertar. Mas Kat já não está para aí virada. Aceitando a mudança que lhe propõem Kat vai tomar o touro pelos cornos. Arquitecta um plano para entalar Big Al. Esse plano engloba a conivência os três que amam. No final não fica com nenhum, a decisão de se livrar de Big Al foi também a decisão de mudar de vida.
Não há muito para contar para além deste resumo. É um filme com mais ambição que força dramática. Ao contrário do que se tem dito por aí (incluindo o Paulo Portas) não achei a interpretação de Milla Jovovich nada de especial, contudo concordo que ela na cena de violência doméstica vai muito bem, e a cena no geral é muito boa, de gelar o sangue, ou pelo menos torná-lo um pouquito mais espesso.

Dentro dos filmes de vingança feminina o The Brave One vai melhor. Gary Lennon, o realizador do filme, para a próxima que implore ao produtor a Jodie Foster, e assim pelo menos terá um terço do filme feito.

Ahh... os trapinhos que a Milla usa são bem funqui.

The Brave One – 2007

Erica Bain (Jodie Foster) mulher feliz com a vida, radialista nova-iorquina (tem um programa curioso que eu ouviria caso alguém o fizesse por cá) e apaixonadíssima pelo seu namorado. Certa noite ela e o seu namorado são espancados num túnel de Central Park. Ela sobrevive, ele não. Depois de regressar do coma Erica Bain vai desenvolver dentro de si dois sentimentos que até então não dera conta de os ter. Inicialmente surge-lhe o medo da cidade que tantas vezes escutou (é nisso que consiste o seu programa de rádio escutar e dar a escutar Nova Iorque). Mais tarde esse medo vai-se camuflando em vingança, não vingança da cidade mas sim das pessoas que a contaminam. Erica Bain vai até andar por locais que antes nunca julgaria andar para encontrar os tais vírus que corroem o interior da sua paixão, Nova Iorque (ou mais foleiro-poeticamente falando, que corroem o interior do seu exterior), se encontrar os bandidos responsáveis pela morte do seu então noivo tanto melhor.
Erica Bain, contudo, não deixou esvaziar a sua moralidade, ela sente que o que faz não é correcto. Fá-lo por medo, por instinto básico, por sanidade. Quando se confronta com o detective Sam Mercer (Terrence Howard) só não se descose toda porque, na sua natureza, o instinto de sobrevivência vem ao de cima. Erica tem consciência dos seus actos e sabe que a sua moral permanece correcta mas nada pode contra os seus instintos básicos.

O grande erro de Neil Jordan, realizador, foi ter filmado uma cena que descredibiliza muitas que depois a sucedem. Erica Bain, pouco após ter acordado do coma, com escoriações na face e de olhar acossado, responde à frase feita ‘eu sei o que deve estar a sentir’, do polícia que a interroga, com um ríspido ‘do you?’. E na cena seguinte, mais coisa menos coisa, Neil Jordan aparece-nos a fazer uns efeitos de câmara simulando efeitos de vertigem num corredor, vemos e ouvimos o ‘fantasma’ do namorado de Erica sentado à cama, há até uma cena de sexo fantasiada. E eu que na excelente cena do ‘do you?’ pensei que Jordan iria optar por um retrato frio daquela personagem…

Agora diga-se Jodie Foster é excelente, sempre foi, pelo menos no retrato das mulheres “masculinizadas”, a profissão de Erica Bain, e o seu programa, é um achado (seria seu ouvinte certamente), o poster do filme à lá 70’s é um dos melhores do ano (tanto este que vos mostro como aquele que chegou a Portugal), e o plano final é também muito bom (eu tenho um fascínio por planos finais, tenho para mim que deve ser o plano mais difícil de escolher/encaixar num filme). Ela com o cão passa, de noite, pelo túnel que viu morrer o seu namorado. Erica ‘reconciliou-se’ com a sua ‘nova’ paixão, Nova Iorque ('nova' porque há uma Nova Iorque antes e depois da agressão.)

Petrified Forest – 1936

Este filme de Archie Mayo deve muita da sua fama à presença, no seu primeiro grande papel de destaque, de Humphrey Bogart. E de facto o homem rouba o protagonismo do filme, e só aparece a meio. Alan Squier (Leslie Howard), escritor, andarilho, romântico on the road em busca de algo no mundo que o faça dizer “worth to dying for”. Gabrielle Maple (Bette Davis, já a dar cartas como leading star) é uma jovem moça, presa na estação de serviço do pai (a estação de serviço tem um nome e pêras, Bar-B-Q), no meio do deserto em Petrified Forest, Arizona, e sonha viajar para França, onde está a mãe. Alan, por casualidade, vai ter à estação de serviço do pai de Gabrielle e, ele e ela, apaixonam-se…
Duke Mantee (grande nome de personagem, grande Bogart que tem um close-up semelhante ao do John Wayne no Stagecoach, de John Ford, vocês sabem daqueles que faziam deles estrelas) é, na primeira parte do filme, notícia. Fugiu da prisão ajudado por três rufias. Na segunda parte também vai parar à estação de serviço onde, além de fazer reféns um punhado de personagens, incluindo Alan e Gabrielle, esperará a chegada da sua namorada, para juntos atravessarem a fronteira para o México.
Alan propõe então a Duke, na ausência de Gabrielle, que o mate. Afinal de contas ele já encontrou a razão “worth to dying for”, e com as notinhas do seu seguro de vida pode pagar a viagem de sonho a Gabrielle. É certo que o argumento é demasiado rebuscado (e o Leslie Howard não convence) mas eu, da Hollywood clássica, papo quase tudo, especialmente porque os argumentistas daquele período sabiam-na toda.
Reparem só, Duke Mantee enquanto espera e espera pela namorada ouve as mais variadas histórias dos reféns, o gajo que quer namorar com Gabrielle, e que ela o despreza por ser demasiado redneck, o avô de Gabrielle que vive fascinado com os fora-da-lei, um casal de ricaços com um casamento de fachada, o pai de Gabrielle, homem íntegro, de princípios impolutos, e especialmente o romantismo e pragmatismo exacerbado de Alan, além de também ter que levar com as conversas dos seus colegas rufias. Quando no final Duke se apercebe que o estamine está rodeado de polícias e que a sua namorada, muito provavelmente, o denunciou, ou pelo menos as vozes dos seus colegas rufias assim o dizem, Duke hesita em atirar sobre Alan, afinal de contas ele é o único ali que pode viver um romance decente. Mas este impede-o de escapar se não o fizer e, num momento de amargura, Duke atira sobre Alan. Basta este momento para me convencer que estou a ver grande cinema. Artificioso até à medula, no argumento e até na linha do horizonte, que é de papelão, mas genuíno nas emoções e nos conflitos.
Naquele tempo, sem grandes artifícios, aliás, por falta deles, aguentavam com uma perna atrás das costas quase todo um filme dentro de uma gas station, isto deveria incomodar e muito os argumentistas actuais, que agora parecem estar em greve... do mau o menos...

Ahhh... já vos disse que Duke Mantee é nome para ser tatuado na língua?

terça-feira, 6 de novembro de 2007

Oz – 1997-2003

Acabou-se a papa doce. Na madrugada desta terça-feira a Sic Radical transmitiu o último episódio da última série de Oz. Segui-a religiosamente, no máximo perdi 2 ou 3 episódios no conjunto de todas as séries, e valeu muito a pena. As três primeiras séries elevaram muito a qualidade o material. Os socos no estômago eram constantes. Depois vamo-nos apercebendo das manhas, como seria de esperar, mas raras vezes nos confortamos com a suposta moral das acções das personagens. Temos que, em seco, aprender a aceitá-las, por mais incompreensível que nos pareçam.
Raras a vezes somos levados para fora da penitenciária Oswald “Oz”, portanto, e o princípio da série é este, caso queiramos permanecer numa prisão lotada com n personagens, que lá fora não souberam respeitar a liberdade alheia, temos que as aceitar tal como elas são, totalmente diferentes de nós na aparência e muitas vezes na sua humanidade. Tom Fontana, criador da série, a HBO e todos os guionistas envolvidos merecem todos os elogios que se lhes possam fazer em relação a Oz, porque foi, e é, um verdadeiro trabalho de músculo, inteligência e sanidade. Aguentar em tão reduzido espaço (e daí a importância dele) dezenas de intrigas e conflitos, nunca maçadores e quase sempre credíveis, é de tirar o fôlego. Muita dessa urgência deve-se à realização dos episódios que parecem herdeiros dos filmes de série b de prisões. Câmara muito próxima das personagens, efeitos especiais manhosos (maioritariamente nos flashbacks, o que faz todo sentido, já que aquilo não era bem sair da prisão), e a exploração da violência como clímax na maior parte das situações. E, claro, os personagens e os actores… tremendo casting. Alvarez, Burr, Saiid, Beecher, Keller, Hoyt, Adebisi, Schillinger, McManus, O’Reilly, Leo Glynn, etc, etc, etc. Vénias e mais vénias.

Oz é também, e sobretudo, um grandioso esforço sobre a abolição da intolerância, do racismo, dos “limites” do humano. Fazê-lo numa prisão, nicho de marginais e foras-da-lei, torna a ambição mais desmesurada.

Anos mais tarde, após o início de Oz, a HBO começou a produzir os Sopranos. E se os Sopranos estenderam em muito os limites da ficção televisiva mainstream americana muito o devem a Oz que, andando no limiar da imoralidade e da brutalidade (e resvalando para lá, por vezes), raras vezes pareceu gratuito.

segunda-feira, 5 de novembro de 2007

When the levees broke – 2007

Spike Lee nunca foi, nem nunca pretendeu ser, subtil nos seus filmes. O punho está sempre em riste e a língua sempre afiada. Neste documentário essa atitude mantém-se.
Este Joint de Spike Lee, co-produzido para a cadeia televisiva HBO, tem como subtítulo A requiem in four acts. Os 4 actos, 4 episódios de uma hora cada, têm a função de nos mostrarem 4 diferentes etapas das consequências do furacão Katrina que desfigurou Nova Orleães. Filme essencialmente estruturado em entrevistas às mais variadas pessoas que, de uma forma ou de outra, estiveram ligadas ao acontecimento, imagens de arquivo, essencialmente televisivas, e imagens recolhidas pelo próprio no local, Lee faz um apanhado das diferentes fases das consequências do furacão naquela cidade.
O primeiro acto é dedicado às memórias pré Katrina. Composto maioritariamente por entrevistas e imagens de arquivo Spike Lee faz um retrato da cidade, e das gentes, quando lhes soou o alarme da vinda do furacão. O que torna este acto o mais emotivo dos 4 porque as entrevistas ocorreram, como é óbvio, após a catástrofe. Conseguimos ler nos rostos das pessoas, ao recordarem-se do que lhes aconteceu antes da chegada do furacão, a perda, o sofrimento, o recorrente there’s no place like home, que lhes afecta naquele momento. Muitos não se preveniram por casmurrice, outros por falta de meios, mas o que trespassa realmente em todos eles é a dor de saber que houve um antes.
O segundo acto dedica-se ao momento imediatamente a seguir à calamidade. As imagens de arquivo das inundações, os mortos abandonados, etc. É o acto mais chocante, aquele em que nos é arremessado à cara aquilo que a televisão não mostra. É certo que a maioria das imagens é de origem televisiva, mas Spike Lee não tem que se preocupar com horários prime time ou de outra ordem. As consequências do furacão foram chocantes, o que torna mais agonizante o abandono inicial a que aquelas pessoas foram deixadas, não só por parte do governo mas de n entidades, começando pelas responsáveis pelo dique que cedeu inundando quase toda a cidade.
O terceiro acto ocupa-se das primeiras acções consequentes por parte do governo de Bush. É neste acto, e no anterior, que Spike Lee mais escarafuncha na ferida. E fá-la sangrar. O inicial virar da cara de Bush é tão incómodo quanto o início das suas acções porque, muitos o dizem, teve que as tomar por já não ser possível virar mais o pescoço. Há famílias separadas, há motins constantes, há ruas devastadas, há mortos nas ruas, etc. Tudo por fazer.
O quarto acto ocorre passado um ano do Katrina, época do Mardi Gras. Os avanços para a reconstrução da cidade ainda são escassos, a burocracia é muita, os seguros esquivam-se como podem, a construção de um novo dique não é consensual, etc. Viraram a cara enquanto puderam mas não evitaram a sua desfiguração. A cidade com a mais pujante vitalidade negra norte-americana já não é reconhecível por aquelas gentes. Nova Orleães morreu, que se faça então o funeral.

Todos os actos fluem sob a emotiva/fantástica banda sonora de Terence Blanchard (mas quem é que ainda não notou que ele é um dos melhores compositores de banda sonoras da actualidade?), encerrados ao som da Walking to New Orleans de Fats Domino.

Vi o filme no DocLisboa em quatro horas contínuas (ok, houve um intervalo de 15 minutos) que o tornaram mais devastador. O efeito de condensar em imagens uma tragédia real numa tela de cinema (ainda) é esmagador.

sexta-feira, 2 de novembro de 2007

Rock Soup – 1991

La Plaza, no coração de Nova Iorque, acolhe um enorme número de indivíduos que não têm onde se abrigar. É um local que sobrevive com o suor dos próprios sem-abrigo, alheio a ajudas do Estado ou de qualquer outra entidade. Está situado no Lower East Side e está a ser alvo de profundas alterações por parte da câmara nova-iorquina. Na primeira parte do documentário acompanhamos o “dia-a-dia” daquele pessoal, que se sente confortável ali (afinal aquilo é a única família que têm). A segunda parte é dedicada à contestação, em assembleia, entre os sem-abrigo, os membros camarários e os velhos da zona. A câmara nova-iorque pretende eliminar o centro La Plaza para que ali possa construir uns imóveis para "entregar" a inválidos e reformados sem grandes recursos. A discussão acende-se e, de parte a parte, os argumentos são pertinentes e as consequências alarmantes (independentemente qual seja o “vencedor” do despique). Hoje, sabemos, o La Plaza não existe.

Zidane, un portrait du 21e siècle – 2005

Este é um dos filmes mais singulares a estrear cá na Lusitânia. E devo dizer que gostei muito da experiência. É daqueles filmes que divide o povo. Uns dizem que não é cinema outros dizem aos outros para irem lavar o chulé dos pés… Não pretendo entrar nessa discussão, pois nunca me ensinaram os limites do que quer que seja, só sei os limites do meu corpo (e é quando é membro não está erecto senão tenho de usar binóculos, outro dirão que é microscópio…) E como o nome do meu blogue é sem critério logo posso já lavar as mãos (apesar de na nota introdutória falar em “mais um blogue de cinema”).
Prosseguindo…
Achei Zidane um filme estupendo (ok, sou fãzérrimo de Zidane, tão bom quanto ele só conheci o Van Basten, os outros génios são imagens de arquivo, que a mim, de certa forma, os dissocia do futebol como jogo). 17 câmaras apontadas a Zinedine Zidane acompanham-no durante um jogo, do seu então Real Madrid, contra o Villareal, captando os seus movimentos, a sua respiração, as hesitações, etc. Parece até que Zidane não está num jogo de futebol. Douglas Gordon e Philippe Parreno são os homens responsáveis por este exercício abstracto sobre o homem, Zidane, e sobre o jogo de futebol. Douglas Gordon, aliás, parece que já tinha explorado esta ideia num outro projecto seu, acompanhando um maestro “só” perante a banda. E segundo consta num comentário no imdb uma experiência semelhante já teria sido feita com George Best, outro jogador da bola (ao leme do projecto estariam outras pessoas, e teriam menos meios, certamente). Desconheço um e outro, portanto esta experiência é nova para mim. Zidane é o maestro, perante a banda de desafinados (que foram os auto-nomeados inter-galácticos), só e angustiado (ou será concentrado?) deixa-nos no final a sós, dentro do relvado, após a sua expulsão.

Lisboa dentro – 2007

Este filme de Muriel Jaquerod e Eduardo Saraiva Pereira, exibido com o Arquitectura de peso (e beneficiaram os dois com a junção), carrega no tom dramático. Acompanhamos diversos grupos de avaliadores e juízes da Câmara Municipal de Lisboa a diferentes casas da capital para avaliar a situação dos imóveis e dos seus habitantes. Vemos diferentes casas, dos estratos sociais correspondentes, e os dramas que aquela casa encerra. Há casas verdadeiramente assustadoras, e, consequentemente, dramas e vidas “assustadoras” (o nó na garganta surge várias vezes). A Lisboa velha é para mim um aspecto romântico da cidade, para outros é o pesadelo de uma vida.

Arquitectura de peso – 2007

Eu gosto das explorações visuais e sonoras do Edgar Pêra enquanto as vejo na tela. Quando saio do cinema vem-me sempre aquela sensação ‘what’s the point?’ Portanto os filmes do Edgar Pêra são geralmente momentos bem passados e pouco mais. Este Arquitectura de peso parece sofrer o mesmo estigma. Nel Monteiro (cantor popular, assumidamente popularucho) foi convidado por Edgar Pêra (que por sua vez foi convidado pela Trienal de Arquitectura de Lisboa para fazer este filme) para comentar sobre algumas obras arquitectónicas lisboetas (Centro Cultural de Belém, Expo) e não só (os estádios de Euro 2004, Casa da Música). Nel Monteiro, no seu estilo portugó-castiço, fala e canta e casca por cima das imagens dos mamarrachos arquitectónicos que, por sua vez, têm em si projectadas imagens de arquivo que anunciam derrapagens orçamentais, e outras calamidades, que levaram à sua concretização. Como tudo em que Edgar Pêra toca, é um exercício assumidamente pop(ularucho), bem dispostos, não deixando de espetar as suas bandarilhas nos dorsos dos políticos e despertar a gargalhada na assembleia que assiste ao filme. Especialmente quando se vê a deformação da cabeça do ex-ministro António Vitorino na imagem projectada na pala de Siza Vieira no Parque das Nações.

Winners and losers - 2007

Final do mundial de futebol de 2006, Itália e França. Lech Kowalski, levado pelo entusiasmo francês que se instalava nas ruas parisienses quando jogava a selecção gaulesa, predispôs-se a filmar um conjunto de reacções de adeptos, fanáticos e lunáticos pelo futebol, italianos e franceses. Teve à sua disposição uma dezena de câmaras que as distribuiu entre França e Itália. Umas colocadas por detrás dos televisores que transmitem a partida, outras ao ombro em diversos locais, incluindo recintos onde se aglomeram centenas de adeptos que assistem à partida em ecrãs gigantes. Cada câmara colocada em França tem, de certa forma, uma simétrica colocada em Itália, ou seja, há uma câmara num café francês outra num café italiano, outra filma uma família francesa outra filma uma família italiana, etc.
Isto deu num retrato sobre os adeptos de futebol enquanto espectadores televisivos (e sobre nós, claro está, como se diz na pequena sinopse do programa do DocLisboa). Nunca mostrando a partida em causa, Kowalski monta o seu material fugindo um pouco ao momento de euforia e da tristeza que um golo provoca, interessa-lhe mais os momentos “mortos” (até porque o jogo não foi nada de especial) onde se instala o cansaço do espectador e que despoleta nele os comentários racistas, xenófobos e outros, de outra ordem. Mas há um momento especialmente interessante, como se lembrarão Zidane agrediu Materazzi na partida, e ver expressões dos rostos de ambos os lados é muito interessante. Os italianos não querem outra coisa que não o cartão vermelho (há aqueles que pressentem algo de mais desesperado na atitude de Zidane) e os franceses não acreditam... como pôde Zidane afundar a embarcação...

Le papier ne peut pas envelopper la braise – 2006

Rithy Pahn é um dos nomes mais conceituados do documentário actual, mas a desilusão foi enorme quando assisti ao seu Les Artistes du Théâtre Brûlé, na edição de 2005 do DocLisboa. Portanto para este Le papier fui com algumas reservas, mas com a esperança de que a sua fama se deve-se a alguma coisa.
Rithy Pahn filmou aqui um conjunto de prostitutas cambodjanas, num prédio na capital Phnom Pehn, que andam naquela vida porque é o melhor sustento para a classe baixa naquele país. Os pais entregam-nas aos chulos (ok, “empresários”) da capital, é lá que param o maior número de turistas, para que elas sustentem a família. Mas, diga-se, que as mães delas também passaram pelo mesmo, ou seja, aquilo, como todas a ratoeiras da pobreza, não passa de um ciclo vicioso.
Rithy Pahn filma-as sempre ao nível dos olhos (como os clássicos americanos) e isto implica que a câmara esteja muito próxima do chão porque elas, geralmente, são-nos apresentadas ajoelhadas, sentadas, deitadas. Drogam-se, comem, discutem, choram no chão, só se levantam quando a noite cai e o trabalho as chama. A cena das cenas é aquela em que cada uma delas beija, com batom, uma parede do prédio.
O único ponto fraco do filme tem a ver com a proximidade da câmara aos seus rostos que lhes provoca "natural" actuação. Não contesto que as memórias e os confrontos delas e entre elas sejam verdadeiros, mas a câmara demasiado próxima, muitas das vezes (nem sempre), retira genuidade à coisa.
Tirando isso o retrato é impiedoso e amoral. Se lá virmos piedade e moral é porque temos a cabeça cheia de ideias feitas e preconceitos que, claro, são os principais responsáveis para que elas ainda lá estejam.

He Fengming – 2007

Wang Bing, segundo consta, fez um dos mais prodigiosos filmes recentes West of the Tracks. Ainda não o vi, mas garanto-vos que quando surgir essa possibilidade é com toda a expectativa que lhe entregarei nove horas da minha vida. Este He Fengming tem um terço da duração daquele monumento, ou seja, são três horas. Três horas ocupadas, quase totalmente, com a senhora He Fengming a divagar sobre a sua memória num tempo conturbado do império chinês. O filme é basicamente isto, variam somente as escalas de plano sobre a senhora e pouco mais. E isto torna-o fascinante porque a senhora He Fengming tem de facto uma história incrível para contar, e conta-a de forma extremamente lúcida e detalhada. É uma história épica que se nos vai compondo na cabeça como se fosse um filme de David Lean ou um Lord of the rings, sem os orcs. Wang Bing fez o filme como uma antítese a esse cinema espectáculo. Aquilo é uma memória pessoal partilhável só pela palavra e não pela imagem. Então para quê filmá-la? Para que sintamos, e vejamos, as memórias a brotarem dela, dos seus olhos, da sua boca, das suas mãos, para que vejamos a noite a cair e a escurecer a sala. Para que nos apercebamos que um Doutro Zhivago, por exemplo, nasce de uma pessoa, de uma memória de uma vida.

Em tempos a cinemateca passou um ciclo chamado os filmes-rio (adoro este conceito), ou seja, filmes enormes, de horas, que têm de ter a fluidez exacta para que aquilo resulte. Têm que se ir instalando em nós. Este He Fengming é um excelente exemplo de filme-rio (daqueles que de tanto baterem na pedra dura, os épicos hollywoodescos, acabam por erodi-la).

A walk into the sea: Danny Williams and the Warhol Factory – 2007

Danny Williams foi um dos vários membros da família Andy Warhol e, segundo alguns, seu amante, que acabou por desaparecer (até hoje não se sabe do seu paradeiro) após um jantar de família em que pegou no carro e se guiou em direcção ao mar. Como o mito nos diz, Warhol tinha o condão de se saber rodear dos mais estranhos e desequilibrados personagens de Nova Iorque e arredores. É muito por causa desse imenso fascínio por Warhol que, invariavelmente, qualquer realizador que aborde uma das pessoas que com ele trabalhou acaba por ser sugado pelo “buraco negro”. Esther Robinson, sobrinha de Danny Williams, não lhe escapa, é certo que tenta erguer a imagem do seu tio das cinzas do esquecimento mas os óculos escuros de Warhol (e a sua fealdade sem eles) são mais fortes.
O filme é maioritariamente composto por depoimentos da família de Williams, no interior rural dos EUA, e membros sobreviventes do carrossel Factory de Warhol, na urbaníssima Nova Iorque, intercalados com imagens filmadas a preto e branco por Danny Williams. As memórias da pandilha Factory sobre Danny são várias, uns dizem que nunca o viram pegar numa câmara de filmar outros que ele tinha um imenso potencial como realizador, etc. Uma coisa é certa, ele era o gajo da iluminação das produções da Factory, e o principal compositor visual do espectáculo dos Velvet Underground Exploding Plastic Inevitabel (e isto para mim já merece um memorial).

Mas o que restam das imagens por ele filmadas e iluminadas (os contrastes do preto e branco são, de facto, muito bem conseguidos), julgo, são escassas para que sejam marcantes mas, de facto, há um momento arrebatador, que a Esther Robinson usa para concluir o filme, Harold Stevenson e outro homem, loiro (desculpem-me não me recordar do nome), num momento de felicidade, em câmara lenta no contrastado preto (moreno) e branco (loiro), servem como projecção da felicidade romântica então vivida entre Williams e Warhol.