terça-feira, 13 de novembro de 2007

Rescue Dawn

Werner Herzog, pertencente à quase extinta casta de realizador castiços, que antes eram norma e lei atrás das câmaras, está sempre pronto a filmar pedaços extraordinários de vida de alguns homens que passaram pelas mais estranhas vivências possíveis. Em Little Dieter needs to fly, documentário, que nunca vi, antecedente a este filme, Herzog narrou as aventuras de Dieter Dengler, alemão nacionalizado americano, que serviu os E.U.A. como piloto de aviação na guerra contra o Vietname. Gosto de pensar que ambos os filmes de Herzog ganham bastante com uma visão conjunta. No entanto só me posso pronunciar sobre Rescue Dawn. E é, sem espinhas, um dos melhores filmes estreados neste ano.
O que é espantoso no filme, além das excelentes actuações do trio Bale, Zhan e Davies, é a forma como Herzog usa a câmara, mais concretamente as panorâmicas. Tirando a parte central do filme, centrada no campo prisional, onde ocorrem as mais importantes elipses temporais do filme (o desgaste nas personagens é notório, e notável em subtileza, de cena para cena), as partes que ensanduicham esse centro correspondem ao olhar subjectivo da floresta sobre Dieter. E, a espaços, o olhar de Dieter sobre a floresta. Após o escape há uma cena espantosa: depois de uma longa caminhada, Dieter, arrastando aos ombros Duane, pára a certa altura e exclama algo como “Look, it’s a village!”, Duane olha em redor e o desalento diz “It’s just forest”, a câmara, numa panorâmica, dá-nos a ver a razão da exclamação de um e do desalento do outro. Estão ambos correctos, o velho dilema optimismo pessimismos (dilema Dieter Herzog?) A força da cena faz-me lembrar que, até ali, o filme já nos deu outras panorâmicas (se não panorâmicas outros planos sequência semelhantes) que não serão só descritivas mas sim estados de espírito. Pouco a ver com o universo de Malick, apesar de não o rejeitar, repare-se na cena em que Dieter vê Duane, já morto, entre a densa folhagem, Herzog é um pragmático. Contudo nunca anula o olhar do seu protagonista. Little Dieter sonha em voar (os americanos aproveitaram-se desse sonho para o pôr a combater), e isso implica sobreviver cá em baixo.

Heartbreak Kid

Pouca coisa a dizer... é pena, pois os irmãos Farrelly já foram mais javardos. E a javardice à lá Farrelly, não tendo muito que se lhe diga, tem muita piada.
Ben Stiller, habitué nestas coisas, continua a ter classe nas típicas banalidades narrativas dos Farrelly. Mas com essa banalidade os Farrelly já fizeram grandes comédias. Contudo as piadas, apesar de até ter algumas bem esgalhadas (a ‘blonde pussy with a life of her own’ é a rainha delas), na maioria já não têm a frescura necessária.
Apesar do deslize, até porque o filme não é tão mau quanto isso, eu ainda deposito nos Farrelly Bros. alguma esperança, porque, para além da comédia americana precisar urgentemente de alguma iconoclastia, foram eles que deram ao descontrole do agora moribundo Jim Carrey o melhor dos rumos.

domingo, 11 de novembro de 2007

Highwaymen – 2003

Robert Harmon nunca me convenceu cabalmente. The Hitcher é de facto um bom filme mas percebe-se o porquê de nunca ter rebentado para além do culto que o encerra. Em Highwaymen é clara a tentativa de Harmon voltar ao território em que foi feliz, ou pelo menos que lhe deu reconhecimento. Ou seja aqui há suspense e carros. Desmembrando o filme nessas duas vertentes: o suspense nas sequências com carros é muito bom (talvez a única coisa boa do filme); o suspense sem carros é tanga (isto para nem falar da suposta tragédia que é a vida daquelas personagens, que é tanga XXL). Tudo o que nos é dado, para além das sequências com os carros, é um completo inventário de ideias feitas (sem um rasgo de sentido de humor): diálogos irritantes que vão abolindo o nosso sentido de intuição; flashbacks risíveis (alguns a preto e branco, outros em câmara lenta, outros em câmara rápida, é ao gosto do freguês); actuações mortiças, não há espaço para o humor, puxa!, afinal são todas personagens traumatizadas; tudo sob o mais chato de todos os defeitos, os planos meticulosamente estudados que nos dão constantemente o sentido da sua encenação (eu ainda sou daqueles que acredita nas palavras de Wes Craven, apesar de o próprio, na prática, já se ter contrariado, um realizador de terror tem de fazer passar a sensação de que é louco). Ahhhh… e o vilão? Quando ainda é só o carro tudo bem, mas quando o homem sai de lá de dentro é inevitável o seu aspecto fragilizar a ameaça que o filme quer manter até ao fim e só nos lembramos da imponência de John Ryder (o sempre espantoso Rutger Hauer) em The Hitcher (ok, a ideia de Harmon foi mesmo essa, a de nos dar esse contraste da carcaça frágil daquele homem sem o carro, percebo… mas…) Portanto, do filme guardarei na memória (pelo menos até às 14:22 de amanhã) as, pelo menos, três excelentes sequências de perseguição. São o único mimo num filme sem eira nem beira.

Never say… never mind – 2001

Asa, Erika, Gunnel, Vendela e Helga, a equipa de biquíni sueca, trabalham para Mr. Blue, arquitecto de missões subterrâneas, com o intuito de salvar o mundo de ataques terroristas, e outros que tais. As 5 suecas, uma delas morre... na amazónia… engolida por uma planta devoradora de… mulheres suecas (a melhor cena do filme, recheado de muitíssimos pontos altos e, diga-se, nenhum baixo). Dizia eu que as 5 conseguem conciliar a sua carreira de espias com a de júris em concursos internacionais de equipas de biquínis, assim como manter uma saudável imagem de role models sociais (outra cena de génio... anotem o nome, no papel higiénico mais à mão, Buzz Feitshans IV). O filme opta por explorar a vertente de espionagem (não que eu a achasse a mais interessante mas do mal o menos) e, sob as ordens do Mr. Blue, as belas e torneadas suecas têm de desmantelar uma organização que, como sabem, pretende qualquer coisa maléfica contra a humanidade em benefício próprio (na verdade já não me lembro da intriga). Mas o que é que isso interessa?
Elas são a verdadeira mão que estabelece a ordem (James Bond anda nisto à anos e não sai da cepa torta, aliás parece que só piora as coisas) com os seus gadgets temíveis (telemóveis que lançam raios provocadores de náuseas e vómitos) e poder de sedução estonteante (garanto-vos que a mais heterossexual das mulheres não resistiria aos seus charmes, ok, a Erika tem os seus defeitos fora de uma discoteca fumarenta às 3 da manhã mas é só...) O mundo está a salvo… se não o mundo pelo menos a hora e meia de filme.

sexta-feira, 9 de novembro de 2007

Rubber Johnny – 2005

A aliança Chris Cunningham Aphex Twin nunca deu errado. Rubber Johnny (não é difícil encontrá-lo no youtube) é mais uma prova nesse sentido, aliás é o seu apogeu (ok, também há o Come to Daddy, tão ou mais perturbador). Quem depois daqueles eléctricos e estranhíssimos 6 minutos não sentir um estímulo, de qualquer ordem ou grandeza, no encéfalo ou é feito de madeira ou de papel celofane. Rubber Johnny é uma pílula de estímulo criativo.

quinta-feira, 8 de novembro de 2007

.45 – 2006

Kat (Milla Jovovich) é a mulheraça que Big Al (Angus MacFadyen) gosta de exibir em público, e a boneca de farrapos que gosta de esfrangalhar em privado. Kat gosta do estatuto, não só porque ele tem um humongous dick, e isto é importante porque ela tem um voraz apetite sexual, vai com homens, mulheres e o que mais houver, mas também porque, coisa de mulheres, se sente protegida com ele. Nem a sua grande amiga lésbica, Vic (Sarah Strange), a consegue convencer que com ele não vai longe. Será preciso que surjam mais dois indivíduos, Reilly e Liz, para que a façam ver, e aceitar, que aquela vida ninguém a merece. Reilly (Stephen Dorff) promete-lhe que, com ele, sairão dali para novas paragens mais atraentes, Liz (Aisha Tyler) deseja que ela deixe aquela vida miserável e se torne noutra pessoa, como ela se tornou, pois também teve um passado de abuso doméstico de que se conseguiu libertar. Mas Kat já não está para aí virada. Aceitando a mudança que lhe propõem Kat vai tomar o touro pelos cornos. Arquitecta um plano para entalar Big Al. Esse plano engloba a conivência os três que amam. No final não fica com nenhum, a decisão de se livrar de Big Al foi também a decisão de mudar de vida.
Não há muito para contar para além deste resumo. É um filme com mais ambição que força dramática. Ao contrário do que se tem dito por aí (incluindo o Paulo Portas) não achei a interpretação de Milla Jovovich nada de especial, contudo concordo que ela na cena de violência doméstica vai muito bem, e a cena no geral é muito boa, de gelar o sangue, ou pelo menos torná-lo um pouquito mais espesso.

Dentro dos filmes de vingança feminina o The Brave One vai melhor. Gary Lennon, o realizador do filme, para a próxima que implore ao produtor a Jodie Foster, e assim pelo menos terá um terço do filme feito.

Ahh... os trapinhos que a Milla usa são bem funqui.

The Brave One – 2007

Erica Bain (Jodie Foster) mulher feliz com a vida, radialista nova-iorquina (tem um programa curioso que eu ouviria caso alguém o fizesse por cá) e apaixonadíssima pelo seu namorado. Certa noite ela e o seu namorado são espancados num túnel de Central Park. Ela sobrevive, ele não. Depois de regressar do coma Erica Bain vai desenvolver dentro de si dois sentimentos que até então não dera conta de os ter. Inicialmente surge-lhe o medo da cidade que tantas vezes escutou (é nisso que consiste o seu programa de rádio escutar e dar a escutar Nova Iorque). Mais tarde esse medo vai-se camuflando em vingança, não vingança da cidade mas sim das pessoas que a contaminam. Erica Bain vai até andar por locais que antes nunca julgaria andar para encontrar os tais vírus que corroem o interior da sua paixão, Nova Iorque (ou mais foleiro-poeticamente falando, que corroem o interior do seu exterior), se encontrar os bandidos responsáveis pela morte do seu então noivo tanto melhor.
Erica Bain, contudo, não deixou esvaziar a sua moralidade, ela sente que o que faz não é correcto. Fá-lo por medo, por instinto básico, por sanidade. Quando se confronta com o detective Sam Mercer (Terrence Howard) só não se descose toda porque, na sua natureza, o instinto de sobrevivência vem ao de cima. Erica tem consciência dos seus actos e sabe que a sua moral permanece correcta mas nada pode contra os seus instintos básicos.

O grande erro de Neil Jordan, realizador, foi ter filmado uma cena que descredibiliza muitas que depois a sucedem. Erica Bain, pouco após ter acordado do coma, com escoriações na face e de olhar acossado, responde à frase feita ‘eu sei o que deve estar a sentir’, do polícia que a interroga, com um ríspido ‘do you?’. E na cena seguinte, mais coisa menos coisa, Neil Jordan aparece-nos a fazer uns efeitos de câmara simulando efeitos de vertigem num corredor, vemos e ouvimos o ‘fantasma’ do namorado de Erica sentado à cama, há até uma cena de sexo fantasiada. E eu que na excelente cena do ‘do you?’ pensei que Jordan iria optar por um retrato frio daquela personagem…

Agora diga-se Jodie Foster é excelente, sempre foi, pelo menos no retrato das mulheres “masculinizadas”, a profissão de Erica Bain, e o seu programa, é um achado (seria seu ouvinte certamente), o poster do filme à lá 70’s é um dos melhores do ano (tanto este que vos mostro como aquele que chegou a Portugal), e o plano final é também muito bom (eu tenho um fascínio por planos finais, tenho para mim que deve ser o plano mais difícil de escolher/encaixar num filme). Ela com o cão passa, de noite, pelo túnel que viu morrer o seu namorado. Erica ‘reconciliou-se’ com a sua ‘nova’ paixão, Nova Iorque ('nova' porque há uma Nova Iorque antes e depois da agressão.)

Petrified Forest – 1936

Este filme de Archie Mayo deve muita da sua fama à presença, no seu primeiro grande papel de destaque, de Humphrey Bogart. E de facto o homem rouba o protagonismo do filme, e só aparece a meio. Alan Squier (Leslie Howard), escritor, andarilho, romântico on the road em busca de algo no mundo que o faça dizer “worth to dying for”. Gabrielle Maple (Bette Davis, já a dar cartas como leading star) é uma jovem moça, presa na estação de serviço do pai (a estação de serviço tem um nome e pêras, Bar-B-Q), no meio do deserto em Petrified Forest, Arizona, e sonha viajar para França, onde está a mãe. Alan, por casualidade, vai ter à estação de serviço do pai de Gabrielle e, ele e ela, apaixonam-se…
Duke Mantee (grande nome de personagem, grande Bogart que tem um close-up semelhante ao do John Wayne no Stagecoach, de John Ford, vocês sabem daqueles que faziam deles estrelas) é, na primeira parte do filme, notícia. Fugiu da prisão ajudado por três rufias. Na segunda parte também vai parar à estação de serviço onde, além de fazer reféns um punhado de personagens, incluindo Alan e Gabrielle, esperará a chegada da sua namorada, para juntos atravessarem a fronteira para o México.
Alan propõe então a Duke, na ausência de Gabrielle, que o mate. Afinal de contas ele já encontrou a razão “worth to dying for”, e com as notinhas do seu seguro de vida pode pagar a viagem de sonho a Gabrielle. É certo que o argumento é demasiado rebuscado (e o Leslie Howard não convence) mas eu, da Hollywood clássica, papo quase tudo, especialmente porque os argumentistas daquele período sabiam-na toda.
Reparem só, Duke Mantee enquanto espera e espera pela namorada ouve as mais variadas histórias dos reféns, o gajo que quer namorar com Gabrielle, e que ela o despreza por ser demasiado redneck, o avô de Gabrielle que vive fascinado com os fora-da-lei, um casal de ricaços com um casamento de fachada, o pai de Gabrielle, homem íntegro, de princípios impolutos, e especialmente o romantismo e pragmatismo exacerbado de Alan, além de também ter que levar com as conversas dos seus colegas rufias. Quando no final Duke se apercebe que o estamine está rodeado de polícias e que a sua namorada, muito provavelmente, o denunciou, ou pelo menos as vozes dos seus colegas rufias assim o dizem, Duke hesita em atirar sobre Alan, afinal de contas ele é o único ali que pode viver um romance decente. Mas este impede-o de escapar se não o fizer e, num momento de amargura, Duke atira sobre Alan. Basta este momento para me convencer que estou a ver grande cinema. Artificioso até à medula, no argumento e até na linha do horizonte, que é de papelão, mas genuíno nas emoções e nos conflitos.
Naquele tempo, sem grandes artifícios, aliás, por falta deles, aguentavam com uma perna atrás das costas quase todo um filme dentro de uma gas station, isto deveria incomodar e muito os argumentistas actuais, que agora parecem estar em greve... do mau o menos...

Ahhh... já vos disse que Duke Mantee é nome para ser tatuado na língua?

terça-feira, 6 de novembro de 2007

Oz – 1997-2003

Acabou-se a papa doce. Na madrugada desta terça-feira a Sic Radical transmitiu o último episódio da última série de Oz. Segui-a religiosamente, no máximo perdi 2 ou 3 episódios no conjunto de todas as séries, e valeu muito a pena. As três primeiras séries elevaram muito a qualidade o material. Os socos no estômago eram constantes. Depois vamo-nos apercebendo das manhas, como seria de esperar, mas raras vezes nos confortamos com a suposta moral das acções das personagens. Temos que, em seco, aprender a aceitá-las, por mais incompreensível que nos pareçam.
Raras a vezes somos levados para fora da penitenciária Oswald “Oz”, portanto, e o princípio da série é este, caso queiramos permanecer numa prisão lotada com n personagens, que lá fora não souberam respeitar a liberdade alheia, temos que as aceitar tal como elas são, totalmente diferentes de nós na aparência e muitas vezes na sua humanidade. Tom Fontana, criador da série, a HBO e todos os guionistas envolvidos merecem todos os elogios que se lhes possam fazer em relação a Oz, porque foi, e é, um verdadeiro trabalho de músculo, inteligência e sanidade. Aguentar em tão reduzido espaço (e daí a importância dele) dezenas de intrigas e conflitos, nunca maçadores e quase sempre credíveis, é de tirar o fôlego. Muita dessa urgência deve-se à realização dos episódios que parecem herdeiros dos filmes de série b de prisões. Câmara muito próxima das personagens, efeitos especiais manhosos (maioritariamente nos flashbacks, o que faz todo sentido, já que aquilo não era bem sair da prisão), e a exploração da violência como clímax na maior parte das situações. E, claro, os personagens e os actores… tremendo casting. Alvarez, Burr, Saiid, Beecher, Keller, Hoyt, Adebisi, Schillinger, McManus, O’Reilly, Leo Glynn, etc, etc, etc. Vénias e mais vénias.

Oz é também, e sobretudo, um grandioso esforço sobre a abolição da intolerância, do racismo, dos “limites” do humano. Fazê-lo numa prisão, nicho de marginais e foras-da-lei, torna a ambição mais desmesurada.

Anos mais tarde, após o início de Oz, a HBO começou a produzir os Sopranos. E se os Sopranos estenderam em muito os limites da ficção televisiva mainstream americana muito o devem a Oz que, andando no limiar da imoralidade e da brutalidade (e resvalando para lá, por vezes), raras vezes pareceu gratuito.

segunda-feira, 5 de novembro de 2007

When the levees broke – 2007

Spike Lee nunca foi, nem nunca pretendeu ser, subtil nos seus filmes. O punho está sempre em riste e a língua sempre afiada. Neste documentário essa atitude mantém-se.
Este Joint de Spike Lee, co-produzido para a cadeia televisiva HBO, tem como subtítulo A requiem in four acts. Os 4 actos, 4 episódios de uma hora cada, têm a função de nos mostrarem 4 diferentes etapas das consequências do furacão Katrina que desfigurou Nova Orleães. Filme essencialmente estruturado em entrevistas às mais variadas pessoas que, de uma forma ou de outra, estiveram ligadas ao acontecimento, imagens de arquivo, essencialmente televisivas, e imagens recolhidas pelo próprio no local, Lee faz um apanhado das diferentes fases das consequências do furacão naquela cidade.
O primeiro acto é dedicado às memórias pré Katrina. Composto maioritariamente por entrevistas e imagens de arquivo Spike Lee faz um retrato da cidade, e das gentes, quando lhes soou o alarme da vinda do furacão. O que torna este acto o mais emotivo dos 4 porque as entrevistas ocorreram, como é óbvio, após a catástrofe. Conseguimos ler nos rostos das pessoas, ao recordarem-se do que lhes aconteceu antes da chegada do furacão, a perda, o sofrimento, o recorrente there’s no place like home, que lhes afecta naquele momento. Muitos não se preveniram por casmurrice, outros por falta de meios, mas o que trespassa realmente em todos eles é a dor de saber que houve um antes.
O segundo acto dedica-se ao momento imediatamente a seguir à calamidade. As imagens de arquivo das inundações, os mortos abandonados, etc. É o acto mais chocante, aquele em que nos é arremessado à cara aquilo que a televisão não mostra. É certo que a maioria das imagens é de origem televisiva, mas Spike Lee não tem que se preocupar com horários prime time ou de outra ordem. As consequências do furacão foram chocantes, o que torna mais agonizante o abandono inicial a que aquelas pessoas foram deixadas, não só por parte do governo mas de n entidades, começando pelas responsáveis pelo dique que cedeu inundando quase toda a cidade.
O terceiro acto ocupa-se das primeiras acções consequentes por parte do governo de Bush. É neste acto, e no anterior, que Spike Lee mais escarafuncha na ferida. E fá-la sangrar. O inicial virar da cara de Bush é tão incómodo quanto o início das suas acções porque, muitos o dizem, teve que as tomar por já não ser possível virar mais o pescoço. Há famílias separadas, há motins constantes, há ruas devastadas, há mortos nas ruas, etc. Tudo por fazer.
O quarto acto ocorre passado um ano do Katrina, época do Mardi Gras. Os avanços para a reconstrução da cidade ainda são escassos, a burocracia é muita, os seguros esquivam-se como podem, a construção de um novo dique não é consensual, etc. Viraram a cara enquanto puderam mas não evitaram a sua desfiguração. A cidade com a mais pujante vitalidade negra norte-americana já não é reconhecível por aquelas gentes. Nova Orleães morreu, que se faça então o funeral.

Todos os actos fluem sob a emotiva/fantástica banda sonora de Terence Blanchard (mas quem é que ainda não notou que ele é um dos melhores compositores de banda sonoras da actualidade?), encerrados ao som da Walking to New Orleans de Fats Domino.

Vi o filme no DocLisboa em quatro horas contínuas (ok, houve um intervalo de 15 minutos) que o tornaram mais devastador. O efeito de condensar em imagens uma tragédia real numa tela de cinema (ainda) é esmagador.

sexta-feira, 2 de novembro de 2007

Rock Soup – 1991

La Plaza, no coração de Nova Iorque, acolhe um enorme número de indivíduos que não têm onde se abrigar. É um local que sobrevive com o suor dos próprios sem-abrigo, alheio a ajudas do Estado ou de qualquer outra entidade. Está situado no Lower East Side e está a ser alvo de profundas alterações por parte da câmara nova-iorquina. Na primeira parte do documentário acompanhamos o “dia-a-dia” daquele pessoal, que se sente confortável ali (afinal aquilo é a única família que têm). A segunda parte é dedicada à contestação, em assembleia, entre os sem-abrigo, os membros camarários e os velhos da zona. A câmara nova-iorque pretende eliminar o centro La Plaza para que ali possa construir uns imóveis para "entregar" a inválidos e reformados sem grandes recursos. A discussão acende-se e, de parte a parte, os argumentos são pertinentes e as consequências alarmantes (independentemente qual seja o “vencedor” do despique). Hoje, sabemos, o La Plaza não existe.

Zidane, un portrait du 21e siècle – 2005

Este é um dos filmes mais singulares a estrear cá na Lusitânia. E devo dizer que gostei muito da experiência. É daqueles filmes que divide o povo. Uns dizem que não é cinema outros dizem aos outros para irem lavar o chulé dos pés… Não pretendo entrar nessa discussão, pois nunca me ensinaram os limites do que quer que seja, só sei os limites do meu corpo (e é quando é membro não está erecto senão tenho de usar binóculos, outro dirão que é microscópio…) E como o nome do meu blogue é sem critério logo posso já lavar as mãos (apesar de na nota introdutória falar em “mais um blogue de cinema”).
Prosseguindo…
Achei Zidane um filme estupendo (ok, sou fãzérrimo de Zidane, tão bom quanto ele só conheci o Van Basten, os outros génios são imagens de arquivo, que a mim, de certa forma, os dissocia do futebol como jogo). 17 câmaras apontadas a Zinedine Zidane acompanham-no durante um jogo, do seu então Real Madrid, contra o Villareal, captando os seus movimentos, a sua respiração, as hesitações, etc. Parece até que Zidane não está num jogo de futebol. Douglas Gordon e Philippe Parreno são os homens responsáveis por este exercício abstracto sobre o homem, Zidane, e sobre o jogo de futebol. Douglas Gordon, aliás, parece que já tinha explorado esta ideia num outro projecto seu, acompanhando um maestro “só” perante a banda. E segundo consta num comentário no imdb uma experiência semelhante já teria sido feita com George Best, outro jogador da bola (ao leme do projecto estariam outras pessoas, e teriam menos meios, certamente). Desconheço um e outro, portanto esta experiência é nova para mim. Zidane é o maestro, perante a banda de desafinados (que foram os auto-nomeados inter-galácticos), só e angustiado (ou será concentrado?) deixa-nos no final a sós, dentro do relvado, após a sua expulsão.

Lisboa dentro – 2007

Este filme de Muriel Jaquerod e Eduardo Saraiva Pereira, exibido com o Arquitectura de peso (e beneficiaram os dois com a junção), carrega no tom dramático. Acompanhamos diversos grupos de avaliadores e juízes da Câmara Municipal de Lisboa a diferentes casas da capital para avaliar a situação dos imóveis e dos seus habitantes. Vemos diferentes casas, dos estratos sociais correspondentes, e os dramas que aquela casa encerra. Há casas verdadeiramente assustadoras, e, consequentemente, dramas e vidas “assustadoras” (o nó na garganta surge várias vezes). A Lisboa velha é para mim um aspecto romântico da cidade, para outros é o pesadelo de uma vida.

Arquitectura de peso – 2007

Eu gosto das explorações visuais e sonoras do Edgar Pêra enquanto as vejo na tela. Quando saio do cinema vem-me sempre aquela sensação ‘what’s the point?’ Portanto os filmes do Edgar Pêra são geralmente momentos bem passados e pouco mais. Este Arquitectura de peso parece sofrer o mesmo estigma. Nel Monteiro (cantor popular, assumidamente popularucho) foi convidado por Edgar Pêra (que por sua vez foi convidado pela Trienal de Arquitectura de Lisboa para fazer este filme) para comentar sobre algumas obras arquitectónicas lisboetas (Centro Cultural de Belém, Expo) e não só (os estádios de Euro 2004, Casa da Música). Nel Monteiro, no seu estilo portugó-castiço, fala e canta e casca por cima das imagens dos mamarrachos arquitectónicos que, por sua vez, têm em si projectadas imagens de arquivo que anunciam derrapagens orçamentais, e outras calamidades, que levaram à sua concretização. Como tudo em que Edgar Pêra toca, é um exercício assumidamente pop(ularucho), bem dispostos, não deixando de espetar as suas bandarilhas nos dorsos dos políticos e despertar a gargalhada na assembleia que assiste ao filme. Especialmente quando se vê a deformação da cabeça do ex-ministro António Vitorino na imagem projectada na pala de Siza Vieira no Parque das Nações.

Winners and losers - 2007

Final do mundial de futebol de 2006, Itália e França. Lech Kowalski, levado pelo entusiasmo francês que se instalava nas ruas parisienses quando jogava a selecção gaulesa, predispôs-se a filmar um conjunto de reacções de adeptos, fanáticos e lunáticos pelo futebol, italianos e franceses. Teve à sua disposição uma dezena de câmaras que as distribuiu entre França e Itália. Umas colocadas por detrás dos televisores que transmitem a partida, outras ao ombro em diversos locais, incluindo recintos onde se aglomeram centenas de adeptos que assistem à partida em ecrãs gigantes. Cada câmara colocada em França tem, de certa forma, uma simétrica colocada em Itália, ou seja, há uma câmara num café francês outra num café italiano, outra filma uma família francesa outra filma uma família italiana, etc.
Isto deu num retrato sobre os adeptos de futebol enquanto espectadores televisivos (e sobre nós, claro está, como se diz na pequena sinopse do programa do DocLisboa). Nunca mostrando a partida em causa, Kowalski monta o seu material fugindo um pouco ao momento de euforia e da tristeza que um golo provoca, interessa-lhe mais os momentos “mortos” (até porque o jogo não foi nada de especial) onde se instala o cansaço do espectador e que despoleta nele os comentários racistas, xenófobos e outros, de outra ordem. Mas há um momento especialmente interessante, como se lembrarão Zidane agrediu Materazzi na partida, e ver expressões dos rostos de ambos os lados é muito interessante. Os italianos não querem outra coisa que não o cartão vermelho (há aqueles que pressentem algo de mais desesperado na atitude de Zidane) e os franceses não acreditam... como pôde Zidane afundar a embarcação...

Le papier ne peut pas envelopper la braise – 2006

Rithy Pahn é um dos nomes mais conceituados do documentário actual, mas a desilusão foi enorme quando assisti ao seu Les Artistes du Théâtre Brûlé, na edição de 2005 do DocLisboa. Portanto para este Le papier fui com algumas reservas, mas com a esperança de que a sua fama se deve-se a alguma coisa.
Rithy Pahn filmou aqui um conjunto de prostitutas cambodjanas, num prédio na capital Phnom Pehn, que andam naquela vida porque é o melhor sustento para a classe baixa naquele país. Os pais entregam-nas aos chulos (ok, “empresários”) da capital, é lá que param o maior número de turistas, para que elas sustentem a família. Mas, diga-se, que as mães delas também passaram pelo mesmo, ou seja, aquilo, como todas a ratoeiras da pobreza, não passa de um ciclo vicioso.
Rithy Pahn filma-as sempre ao nível dos olhos (como os clássicos americanos) e isto implica que a câmara esteja muito próxima do chão porque elas, geralmente, são-nos apresentadas ajoelhadas, sentadas, deitadas. Drogam-se, comem, discutem, choram no chão, só se levantam quando a noite cai e o trabalho as chama. A cena das cenas é aquela em que cada uma delas beija, com batom, uma parede do prédio.
O único ponto fraco do filme tem a ver com a proximidade da câmara aos seus rostos que lhes provoca "natural" actuação. Não contesto que as memórias e os confrontos delas e entre elas sejam verdadeiros, mas a câmara demasiado próxima, muitas das vezes (nem sempre), retira genuidade à coisa.
Tirando isso o retrato é impiedoso e amoral. Se lá virmos piedade e moral é porque temos a cabeça cheia de ideias feitas e preconceitos que, claro, são os principais responsáveis para que elas ainda lá estejam.

He Fengming – 2007

Wang Bing, segundo consta, fez um dos mais prodigiosos filmes recentes West of the Tracks. Ainda não o vi, mas garanto-vos que quando surgir essa possibilidade é com toda a expectativa que lhe entregarei nove horas da minha vida. Este He Fengming tem um terço da duração daquele monumento, ou seja, são três horas. Três horas ocupadas, quase totalmente, com a senhora He Fengming a divagar sobre a sua memória num tempo conturbado do império chinês. O filme é basicamente isto, variam somente as escalas de plano sobre a senhora e pouco mais. E isto torna-o fascinante porque a senhora He Fengming tem de facto uma história incrível para contar, e conta-a de forma extremamente lúcida e detalhada. É uma história épica que se nos vai compondo na cabeça como se fosse um filme de David Lean ou um Lord of the rings, sem os orcs. Wang Bing fez o filme como uma antítese a esse cinema espectáculo. Aquilo é uma memória pessoal partilhável só pela palavra e não pela imagem. Então para quê filmá-la? Para que sintamos, e vejamos, as memórias a brotarem dela, dos seus olhos, da sua boca, das suas mãos, para que vejamos a noite a cair e a escurecer a sala. Para que nos apercebamos que um Doutro Zhivago, por exemplo, nasce de uma pessoa, de uma memória de uma vida.

Em tempos a cinemateca passou um ciclo chamado os filmes-rio (adoro este conceito), ou seja, filmes enormes, de horas, que têm de ter a fluidez exacta para que aquilo resulte. Têm que se ir instalando em nós. Este He Fengming é um excelente exemplo de filme-rio (daqueles que de tanto baterem na pedra dura, os épicos hollywoodescos, acabam por erodi-la).

A walk into the sea: Danny Williams and the Warhol Factory – 2007

Danny Williams foi um dos vários membros da família Andy Warhol e, segundo alguns, seu amante, que acabou por desaparecer (até hoje não se sabe do seu paradeiro) após um jantar de família em que pegou no carro e se guiou em direcção ao mar. Como o mito nos diz, Warhol tinha o condão de se saber rodear dos mais estranhos e desequilibrados personagens de Nova Iorque e arredores. É muito por causa desse imenso fascínio por Warhol que, invariavelmente, qualquer realizador que aborde uma das pessoas que com ele trabalhou acaba por ser sugado pelo “buraco negro”. Esther Robinson, sobrinha de Danny Williams, não lhe escapa, é certo que tenta erguer a imagem do seu tio das cinzas do esquecimento mas os óculos escuros de Warhol (e a sua fealdade sem eles) são mais fortes.
O filme é maioritariamente composto por depoimentos da família de Williams, no interior rural dos EUA, e membros sobreviventes do carrossel Factory de Warhol, na urbaníssima Nova Iorque, intercalados com imagens filmadas a preto e branco por Danny Williams. As memórias da pandilha Factory sobre Danny são várias, uns dizem que nunca o viram pegar numa câmara de filmar outros que ele tinha um imenso potencial como realizador, etc. Uma coisa é certa, ele era o gajo da iluminação das produções da Factory, e o principal compositor visual do espectáculo dos Velvet Underground Exploding Plastic Inevitabel (e isto para mim já merece um memorial).

Mas o que restam das imagens por ele filmadas e iluminadas (os contrastes do preto e branco são, de facto, muito bem conseguidos), julgo, são escassas para que sejam marcantes mas, de facto, há um momento arrebatador, que a Esther Robinson usa para concluir o filme, Harold Stevenson e outro homem, loiro (desculpem-me não me recordar do nome), num momento de felicidade, em câmara lenta no contrastado preto (moreno) e branco (loiro), servem como projecção da felicidade romântica então vivida entre Williams e Warhol.

quarta-feira, 24 de outubro de 2007

East of paradise – 2006

Este ano o DocLisboa dedica uma retrospectiva (não integral) a Lech Kowalski, em tempos realizador underground nova-iorquino, agora residente em França, “militante” documentarista. Como todos os seus filmes, segundo consta e segundo o próprio, East of Paradise, que ganhou um prémio especial em Veneza, é um objecto tirado às suas entranhas e, neste caso, também às da sua mãe. A primeira parte do filme é dedicada exclusivamente a ela que, na primeira pessoa, relata as suas memórias traumáticas de sobrevivente, nos campos de concentração polacos, aquando da invasão nazi à sua nação. A câmara raramente se afasta do seu rosto (há por lá uns planos de tectos e paredes dispensáveis, penso eu) enquanto ela expurga os seus demónios, as suas memórias, os seus fantasmas. Sorri de quando em vez (há sempre memórias boas dentro daquele turbilhão, graças a Deus à selectividade), chora bastantes vezes mas relata-nos sempre de forma precisa e minuciosa aquela ocupação, não de um ponto de vista histórico-político (mas no fundo acaba por sê-lo), mas sim do ponto de vista pessoal e afectivo.
Na segunda parte do filme (há uma cisão brusca nele) é-nos mostrada a vivência (ou, lá está, a memória dessa vivência) de Kowalski em Nova Iorque. Estabelecendo um paralelo (talvez etário) entre as vivências da sua mãe com as dele, Kowalski, narrando sobre material de arquivo por si filmado, relembra os tempos de estudante de cinema, a invasão punk britânica (Kowalski fez um dos mais famosos documentários sobre a chegada dos Sex Pistols à América em D.O.A. – Dead on arrival), a sujidade das ruas, os freaks, os junkies, a pornografia, ou seja, lembra-se e mitifica Nova Iorque. Recorda-se também da morte de John Spangler, seu amigo, figura icónica desse underground, infectado com HIV, filmando-o na sua morte, no seu padecimento, e na sua vitalidade.

O mais fascinante no filme tem a ver com o paralelismo estabelecido entre duas gerações e a relação que elas estabelecem com a sua memória. A mãe de Kowalski só através da selectividade da sua memória se pode lembrar e comover(-nos) com o seu passado (as imagens de arquivo que existirão sobre a ocupação serão demasiado impessoais). Lech Kowalski para além dessa selectividade da sua memória tem também o seu material fílmico (que também é selectivo porque, na verdade, tudo é uma selecção quando alguém se predispõe a gravar o que quer que seja). Lech Kowalski aliando essas duas formas de memória torna a sua memória num híbrido, o material “objectivo” filmado é contaminado pela “subjectividade” da sua memória real… ou “orgânica”.
A cena final do filme, e principalmente o último plano, é magnífica. A mãe de Lech Kowalski fotografa-o, assim como a sua câmara (e ao seu colega de iluminação), enquanto este a filma. As fotografias tiradas por ela vão então surgindo, intercalando o material filmado por ele. No último plano ele, pondo-se ao lado da mãe (ou seja, ambos captados pela câmara de filmar), tira uma foto à câmara e o que fica é a imagem estática do que a câmara está a filmar (Lech e a sua mãe) e não o que a máquina fotográfica realmente captou. Confuso, não?… melhor: o último plano é uma imagem estática de Lech e da sua mãe captados pela câmara de filmar, como se o clique da máquina fotográfica captasse e congelasse o que a câmara de filmar capta. Como se a memória fotográfica, por momentos, equivale-se à memória fílmica… realçando mais ainda que ambas ganham uma nova dimensão quando confrontadas com a memória “orgânica” que, por fim, as organiza.

quinta-feira, 18 de outubro de 2007

RRRrrrr!!! – 2004

Non sense mais non sense mais non sense com a falta de elegância incaracterística de um francês. Alain Chabat, realizador e actor, deve venerar os Monty Python e portanto, como bom discípulo, segue os seus ensinamentos que são: nenhuns. Tudo existe num universo sem sentido, até o próprio filme, e como tal nada deve fazer sentido. Nem o fim, nem o meio, nem o princípio devem corresponder a um mínimo de lógica (não necessariamente por esta ordem, como Godard não diria mas filmaria.) É certo que no final a satisfação de o ter visto não é tão grande como aquela sentida após se assistir a um filme da pandilha Python, mas não desmerece o reconhecimento. Deixai Chabat aperfeiçoar a máquina e a quinquilharia que no futuro teremos alguns filmes mais que interessantes.
Lembro-me de Chabat no famoso, e sobrevalorizado, Le gôut dês autres com uma actuação minimalista. Neste também anda pelo mesmo registo, o filme à volta dele é que anda todo histérico, e a certa altura lembrei-me de um Takeshi Kitano ou de um Buster Keaton num filme dos Monthy Python… é exagero meu esta extrapolação... ok, deixem-no aperfeiçoar as técnicas pythonescas e depois logo pensemos noutros horizontes.
A história do filme é mais ou menos assim: num tempo pré-histórico (faz sentido o absurdo, não sabiam contar histórias), numa povoação onde todos se chamam Pierre, ocorre um assassinato que desencadeia uma investigação levada a cabo pelos nativos. A isto junte-se uma rivalidade entre povoações, a que tem o segredo do champô e a que não tem, e já está. O resto são piadas atrás de piadas, non sense atrás de non sense, e no final partimos para outra.

The Lookout – 2007

Ainda não é desta que o actual cinema independente americano me satisfaz. Scott Frank, que já escreveu alguns argumentos interessantes, parece querer seguir o caminho trilhado por alguns dos seus colegas indies. Caminho esse que, não querendo generalizar, parte invariavelmente do mesmo princípio (o adolescente inadaptado) e quase sempre chega ao mesmo fim (a reconciliação familiar). Este modelo parece-me ter explodido (porque é sempre difícil descortinar origens) com Donnie Darko e, de enxurrada, arrastou todo esse género de cinema. Devo dizer que não sou grande fã de Donnie Darko (apesar de recentemente ter visto a versão director’s cut e ter melhorado a minha opinião sobre ele) e, se calhar, é muito por causa disso que acho (quase) todos estes filmes indies desinteressantes. Brick, Chumscrubber, Thumbsucker, Me, you and everyone we know, Little miss sunshine, etc todos me passaram ao lado. Talvez dos mais recentes só The squid and the whale me surpreendeu. Este The lookout, não sendo mau de todo, acaba também por não estar ao nível que esperaria (mas quem me manda esperar algo?)
Ao contrário da geração de 90 (Spike Lee, Quentin Tarantino, Wes Anderson, Hal Hartley, Larry Clark, etc, que se caracterizavam por ter um cinema extremamente pessoal, cinéfilo, é certo, mas quase intransmissível) esta geração está mais interessada em olhar para o alheamento dos jovens indivíduos como algo trágico (os de 90 não eram tão pessimistas). Apesar disso nenhum deles chega aos limites formais, abstractos e sem ponta de julgamento de um Larry Clark ou um Gus Van Sant, pois estão mais interessados em integrar nos seus filmes um enredo intricado e cheio de complexidades que acabam por se desviar do essencial.

Chris Pratt (Joseph Gordon-Levitt, que já é uma confirmação, é com Jeff Daniels o melhor do filme) foi uma popular figura na sua escola e foi também o culpado de um grave acidente de viação, onde morrem dois seus amigos e deixa mutilada a sua então namorada. Anos mais tarde encontramo-lo incapacitado psicologicamente (tem perdas de memória, não consegue efectuar determinadas tarefas rotineiras, etc) dependente monetariamente, a contra gosto, da sua rica família. Vive com um amigo cego (Jeff Daniels), que é o seu suporte moral diário, e vive à conta de um trabalho de vigilante num banco no meu do nada. Certo dia vê-se envolvido numa complexa trama que envolve um punhado de personagens bizarras, um assalto ao “seu” banco e outras coisas desinteressantes (nota-se claramente que aqui o argumentista Scott Frank se sobrepôs ao cineasta.)
É claramente aí que a minha afinidade com o filme falha, porque a certa altura é forçada a entrada da intriga hollywoodesca (e aqui se vê a clara diferença entre a geração anterior dos independentes e a actual, que muitas vezes, têm a chancela dos grandes estúdios americanos… porque afinal estes filmes sempre têm um mercado.) Numa época em que as reflexões de Gus Van Sant e a implacabilidade moral de Larry Clark ditam regras, aquilo tudo soa-me a conversa da tanga.

quarta-feira, 17 de outubro de 2007

Ascenseur pour l’échafaud – 1958

Numa altura em que a geração da Nouvelle Vague lançava os primeiros rebentos da “revolução” (começavam a surgir algumas curtas-metragens de alguns arautos do movimento, que até ali só escreviam nas páginas do Cahiers du Cinema) houve algumas longas-metragens “não oficiais” que a anteciparam. Mas, como chico-espertos que eram os moços dos Cahiers, logo tratavam de dar nas orelhas aos filmes que não faziam parte da “família”. Faziam-no com o intuito de, sem oposição, melhor tomarem de assalto o mercado cinematográfico francês. Alguns realizadores e filmes (apesar de eu fazer esta distinção, eles nem sequer a faziam) talvez merecessem esse puxão de orelhas no entanto outros há que, além de não o merecerem, ultrapassam, na Ducati de Casey Stoner, os gestos mais ou menos vanguardistas do movimento. Esta estreia de Louis Malle nas longas-metragens é disso exemplo.
Alicerçado nos arquétipos do filme noir americano Malle opta por subvertê-lo sem nunca escamotear o gozo que isso traz. A loira madame Carala (a já fenomenal Jeanne Moreau), chorando ao telefone, suplica a Julien Tavernier (Maurice Ronet) que faça, naquele dia, o golpe que planearam e mate o patrão deste, seu marido, monsieur Carala. Assim é. Julien, com artefactos no seu escritório e técnicas à super espião, executa o plano quase sem mácula. No carro é que se apercebe que ainda há uma prova a eliminar. Volta atrás. Quando sobe no elevador para o seu escritório este pára por corte de energia. Ali fica ele praticamente todo o filme.
Na rua um jovem casalito de classe baixa, ela, morena, fascinada com o glamour à lá espião de Julien, ele fascinado com o seu carrão, metem-se ingenuamente no seu carro e põem-se on the road. Road essa que os leva ao assassínio e ao pânico de se sentirem perseguidos por polícias.
A madame Carala julga Julien fugido, cobarde e infiel, desconhecendo que ele ficara preso no elevador, pois o carro dele passara por ela a grande velocidade com a jovem morena dentro e um vulto de homem. Madame Carala deambula então por Paris ao som da sua interrogatória e monocórdica voz de consciência e ao som do trompete de Miles Davis (icónica, famosa e cooooool banda sonora).

No final lá se desmaranha o trágico novelo narrativo e o que fica, e se sobrepõe, é a deliciosa subversão dos lugares comuns do filme noir. Ora a femme fatale, a loira madame Carala, apesar de ser aquela que despoleta o crime, é também aquela que trará maior densidade psicológica ao filme com a sua voz off a ecoar e a desconfortar (geralmente essa voz é atribuída aos homens). O homem assassino passa o filme impotente, em silêncio, preso no elevador. É então o casal de jovens inconscientes que traz o sangue e vertigem ao filme, roubando, matando e dissimulando (como se estivessem a viver num filme, mas atormentados com isso). E o facto da jovem morena, a femme maternal (são sempre elas que acalmam os corações rebeldes masculinos), se sentir conivente nos crimes do seu par (ela quer que se escreva nos jornais, quando forem apanhados e mortos, o título “os amantes trágicos”) soa-me a subversão.
Portanto Louis Malle, neste filme, põe em Paris quatro arquétipos do filme noir americano e nenhum deles se sente confortável com o papel que lhe coube (estão noutro país, noutra cultura, onde as estradas não se estendem para sempre, têm que andar às voltinhas). Logo, os quatro, sentem que terão um fim trágico, como nos filmes noir.

sábado, 13 de outubro de 2007

Coffy – 1973

Badasssss black chick Pam Grier é a heroína neste famoso blaxploitation. Coffy (mulherão Pam Grier) é uma enfermeira que tem a irmã internada num hospital, tem um amigo que é polícia e tem um namorado que é candidato a senador. São estas as três paixões de Coffy. E são elas que a vão deixar só.
Coffy surge-nos inicialmente como uma badassssssssss prostituta que arruma dois “pequenos” traficantes, causadores directos do internamento vegetativo da sua irmã, mas logo de seguida é-nos mostrada a sua verdadeira face. Coffy não passa de uma frágil enfermeira que tenta viver melhor com a memória da sua infeliz irmã. Não vive essa dor sozinha, tem a companhia do seu amigo de infância, o agora polícia. Polícia íntegro, pois expressa-se (e actua em conformidade) várias vezes sobre os problemas na sociedade afro-americana. E um dos problemas que mais aflige essa comunidade é o facto de os brancos, por trás, manipularem os chefes pretos, sejam eles políticos, traficantes, etc.
Certa altura Coffy envolve-se com o candidato a senador que lhe diz defender os mesmos ideais que ela. Apaixona-se então por ele. Entretanto o polícia, demasiado íntegro, é espancado por um par de capangas com a conivência dos seus colegas polícias. Coffy “in rage” vai então encetar uma vingança que, começará por baixo (um poderoso chulo, mas não tão poderoso como pensa) até chegar ao topo onde encontrará o seu namorado e candidato a senador. Pelo meio encontrará, de facto, um grupo de homens brancos que manipulam os poderosos homens pretos. Mas, mais grave que isso, o que Coffy descobre é um grupo de homens que controlam uma sociedade machista e misógina, consequentemente racista e segregadora.
Para o fim Coffy ainda quer acreditar que o namorado a ama (apesar dele a ter mandado matar, à sua frente, anteriormente – o que reforça, algo ingenuamente, a face frágil de Coffy e não a faceta badasssss, que de quando em vez surge). Mas ele ama-a tanto como a lourinha que o aguarda no quarto. No fim Coffy, frágil como sempre, caminha só pela praia. A vingança fez-se, a mulher desmoronou-se.

Jack Hill, realizador e argumentista, que já colaborara com Pam Grier, e lhe deu esta oportunidade de ser a leading star no filme, tem a desfaçatez, e sentido de humor, suficiente para também ele se pôr em causa. Afinal ele é branco num filme negro (os blaxploitations na generalidade eram filmados por brancos para os guetos pretos) e, numa subtil cena, auto-caricatura-se. O candidato a senador, a certa altura, cercado de apoiantes está a fazer umas declarações sobre os seus objectivos pró afro-americanos e o realizador (branco) daquilo manda os apoiantes aplaudi-lo, interrompendo o discurso, e corta a cena. É uma cena pequeníssima, esclarecedora mas consciente de Hill.

Isto tudo num filme funky, com banda sonora a cargo de Roy Ayres (para quem não sabe, é Grande – e parece que vem ao Casino de Lisboa um dia destes…), carros monstruosos (que ocupavam o scope inteiro, pareciam tubarões nas estradas), armas grandalhonas (carros e armas, objectos fálicos, que Coffy usará como armas de morte contra os homens, o último morrerá de falo desfeito (as mulheres levam porrada corpo a corpo, numa cena memorável, onde todas ficam de mamas ao léu), afros gigantes, cores berrantes, vocês sabem… estamos nos tempos dos funky pimps, etc.
Coffy é um entretenimento consciente, com um final desolador, e com uma grande mulher ao leme. Ainda estou para saber o que é melhor que isto (à excepção de Foxy Brown, também de Jack Hill, claro está).

sexta-feira, 12 de outubro de 2007

Enter the Dragon - 1973

Ponto culminante na obra de Bruce Lee. A sua própria viúva diz, num dos extras do dvd, que a maior ambição dele era fazer uma produção hollywoodesca na China. Conseguiu mas não a tempo de a ver. Morreu dias antes da sua estreia.
Como quase todas as produções da máquina de Hollywood há sempre algo que se perde. E perde-se mais quando não há um excelente realizador por detrás da coisa. Robert Clouse não me parece ser especialmente dotado - safou-se como pôde - e fez um típico filme dos seventies americano - demasiado americano - adicionando-lhe a prática de kung-fu. Psicadelismos, cores berrantes (parece que depois dos seventies nunca mais Hollywood quis pintar uma tela de cinema), scope, etc. Tudo está cá aliado a uma trama à James Bond - então em alta - com um agente infiltrado num lugar exótico para derrubar um tirano megalómano. Lee (Bruce Lee, e o facto de o nome da personagem ser esse parece-me reforçar o empenho pessoal no projecto) é o James Bond de serviço, que se vai ver infiltrado num torneio de kung-fu, com alguns dos melhores lutadores do mundo, numa ilha apátrida, de um só dono Han (Kien Shih). É então enviado para lá porque, tanto a polícia como os monges de shaolin, têm fortes suspeitas de que Han anda a tramar algum esquema ilegal. E assim é: o torneio é um pretexto para angariar pessoal de confiança que possa exportar ópio para as mais diversas paragens do globo.

Agora vamos ao que interessa: a porrada. Algumas dessas cenas são, de facto, muito boas, e quem é fã de Bruce Lee sabe que não há modo dele falhar. Dizem, a propósito do período clássico de Hollywood, que Fred Astair estava para a classe alta como Gene Kelly para a classe baixa (sendo ambos geniais). Eu digo que Bruce Lee está para Astair como Jackie Chan para Kelly. As melhores cenas de cacetada ocorrem no subsolo e é fantástico vê-lo, de corpo todo contraído (coberto de sombras), à espera dos avanços dos oponentes (geralmente fora de campo) para, com pequenos movimentos (a elegância de Astair), aumentar a área do cemitério da zona. Também por lá andam um John Saxon (que lá se vai safando numa ou noutra pirueta), Jim Kelly (actor do muito famoso blaxploitation-kung-fu-shit Black Belt Jones também realizado por Robert Clouse, que nunca vi), Yang Sze (um dos vilões supremos dos filmes de kung-fu) e umas quantas moças jeitosas (afinal de contas estamos num filme de 007 - mas neste caso o mau é quem tem os gadgets). E de grande valor é também a banda sonora de Lalo Schifrin, mestre em temas funkys, logo mestre nos seventies.

No seu todo é um óptimo filme de kung-fu, não é contudo um Way of the Dragon nem um Game of Death, e bem merece que o dignifique, nem que seja pela imensa admiração que tenho por Bruce Lee.

Du Rififi chez les hommes – 1955

Jules Dassin, realizador americano de vários filmes noir, enquanto esteve exilado em França (era bruxa no tempo em que as caçavam), adaptou ao grande ecrã a então pouco conhecida personagem francesa de romances de cordel Rififi (calão francês para escroque, ou melhor para ‘tough guy’), e tornou-a ícone. Nunca, anteriormente, vira algum filme de Dassin mas posso garantir-vos, com toda a segurança, que ele aqui é mestre. Du Rififi chez les hommes é dos maiores (senão o maior) filmes de golpe que já vi. Se enquanto via o Quais des Ofévres me lembrava de um alfaiate em labor aqui a imagem que me ocorreu foi de um relojoeiro. Garanto-vos que aqui não há qualquer ganga (logo não há alfaiates, ou pelo menos alfaiates de mineiros), todas as cenas têm razão de ser, todas aprofundam as personagens, todas mostram acções e elidem intenções, e nunca, em algum momento, nos esquecemos que estamos em território noir, logo trágico. É-me profundamente exaltante ver filmes destes onde, com uma precisão temporal refinadíssima, se tomam as mais diversas liberdades. Há por lá uma cena de meia hora (não sei o tempo exacto, mas por mim poderia estender-se para sempre) em que não se ouve uma palavra, em que o som é mínimo, onde o cinema é máximo. É incrível garanto-vos.
A história é mais ou menos assim. Toni “Rififi” le Stéphanois (Jean Servais, grande actor entre grandes actores, o elenco é fabuloso incluindo o próprio Jules Dassin sob o pseudónimo Perlo Vita) fora, antes de ter estado encarcerado, um dos mais perspicazes ladrões de Paris. Agora, arredado dessa vida, é um homem viciado na má vida, que lhe dá com os pés e que o sobrecarrega de dívidas. A certa altura é aliciado por dois compinchas – mais tarde virá o terceiro - para participar num golpe a uma ourivesaria. Ele aceita, já que nem dinheiro nem mulher tem (a primeira cena dele com ela é fabulosa). Planeiam e fazem o golpe (os 30 min. de perfeição). Na última parte do filme Grutter dono do bar L’âge d’or, onde trabalha Mado (Marie Sabouret), interesse amoroso de Toni, descobre quem fez o golpe e tenta chantageá-los, raptando o filho de um deles. Toni moralmente, até por que é padrinho da criança, sente-se obrigado a resgatá-la.

As pequenas coisas do filme, que o tornam grande, são tantas que não vale a pena enumerá-las. Mas há um aspecto que adoro. Os homens e as mulheres. Toni le Stéphanois ainda ama Mado (e vice-versa), mas moralmente já não a pode encarar, pois ela não é mais que uma reles rameira. Mario Ferrati (Robert Manuel) vive e ama a rameira que tem lá em casa, pois não tem as quezílias morais de Séphanois. César le Milanais (Perlo Vita aka Jules Dassin) é um bon-vivant, deita-se com aquelas que se queiram deitar com ele; e chora ao saber da morte de Ferrati. Jo le Suedois (Carl Möhner), o mais jovem, é um homem de família. É a figura mais socialmente estável, e é aquele que mais vai cair a pique. Com ele há uma cena estrondosa: no quarto da criança, então desaparecida, é lhe entregue, assim como a Toni (os outros dois já morreram), a mala com o dinheiro correspondente ao golpe, ao abri-la, há um silêncio (daqueles que gritam) denunciador de tudo. O dinheiro que ali está diante deles ocupou o lugar da criança. Depois há Grutter, carta fora do baralho, dono da casa de alterne e que com elas mantém uma relação mercantil.
Todos deixam de viver – não é um spoiler, aliás isto é um film noir (tal & qual, à francesa e tudo) – quando elas deixam de acreditar neles. Não se pode falar em traição (excepto num caso, o de César, que não a ama), elas é que os amavam tanto quanto eles as amavam.

Quando revir o filme talvez volte a falar dele. Porque, como os melhores, só visto e revisto… e, claro está, mais um herói/realizador para o cardápio.

quarta-feira, 10 de outubro de 2007

Fay Grim – 2006

Não tendo visto a prequela Henry Fool (mas Hal Hartley disse que o pretende não dependente de Henry Fool) achei Fay Grim, complemento feminino ao filme matriz, desenxabido.
Primeiro: Parker Posey é um espanto de mulher. Parker Posey é Fay Grim e, portanto, é 90% do que foi filmado – não do filme, if ya know what i mean, buddy – o que por si só eleva bastante a qualidade do material. Resto: tem graça que Hartley disse que é normal nos melhores filmes policiais, ou de espionagem ou o raio que o valha, as personagens – e consequentemente o espectador - às tantas já não saberem às quantas andam. E de facto isso aconteceu-me no filme (e acontece-me nos policiais em geral, frequentemente) mas, ao contrário do que me acontece noutros, mais cedo ou mais tarde quero perceber o que se me escapou, ou pelo menos ficar intrigado com isso. Mas em Fay Grim isso não me aconteceu. Perdi o fio à meada e às tantas já nem isso me interessou, fiquei-me pelos planos de Posey.Uma coisa é certa, e de muito boa construção, a gravidade que se vai sedimentando ao longo do filme - objectivo de Hartley – foi plenamente cumprido. Fay Grim inicialmente surge-nos como uma irresponsável mãe, que faz flirts com polícias e homens mais velhos, que nada sabe sobre o que se passa para além do seu bairro, vai-se ver envolvida numa conspiração de tal ordem e medida, que já nem cabe nos E.U.A., e lhe vai retirando o humor e acentuando-lhe a gravidade. Neste aspecto, reforço, o filme demonstra alguma mestria. De resto pouco, ou nada, me interessou, além de Posey. Lá vou eu tentar rever o Simple Men, Trust, e Amateur, e já agora ver o Henry Fool (porque se calhar é mesmo necessário), pois Hal Hartley foi (e voltará a ser, caramba!) grande.

Planet Terror - 2007

Bruce Willis (quem mais?) matou Osama bin Laden. Eis a piada mor de Planet Terror e é a partir dela que tudo em Planet Terror faz sentido... ou melhor é a partir dela que tudo deixa de fazer sentido. Rodriguez sempre teve a desfaçatez, e engenho, de se marimbar para a lógica, para a coerência, para o credível. Neste filme, pelo menos, tudo serve para ser esticado aos limites, joga-se no absurdo e tritura-se tudo – mamas, rabos, pernas, pescoços –, na montagem, na banda sonora, no guião, etc. As personagens aqui, como na generalidade dos seus filmes, só sobrevivem se mutiladas, estropiadas, ensanguentadas, e se é que sobrevivem. O motor da trituradora (Grindhouse) só é verdadeiramente accionado quando surge a tal piada – e faz toda a lógica que assim seja, pois é o momento mais ilógico de tudo, e mais cool. No entanto o que mais me afastou deste divertimento descomprometido foi a injecção de ingenuidade que Rodriguez lhe quis dar. A meu ver essa ingenuidade, pelo menos desta forma, já não pode existir porque se está a fazer um filme sobre a memória de outros (sobre os seus cadáveres). Que ele sinta uma enorme afinidade com os exploitations, e os série b no geral, parece-me bem, muito bem, mas que a partir deles nada mais queira fazer para os valorizar, parece-me mau.
A história é, mais ou menos, isto: Bruce Willis matou Bin Laden e, por isso, foi descarregado sobre o exército norte-americano, então em missão no médio oriente, uma arma química manhosa, que os transforma numa espécie de zombies. Quando o exército volta à pátria começa a procurar uma cura para a coisa. Encontram um cientista (árabe, diga-se) que está-se pouco importando para o dilema deles e explode o recipiente químico pelos ares que, em poucos minutos, infectará o Texas (!) inteiro. Depois um grupo de improváveis sobreviventes, os heróis da história, tentam salvar o couro escapando para o México (sim, a sombra política de Romero anda por aqui, mas sem a sua acutilância).
O filme tem momentos soberbos, a cena inicial da go-go dancer, e futura (e é, de facto, uma delícia) one-leg-machine-gun, Cherry Darling (Rose McGowan em grande forma, é a melhor coisa do filme) merece a futura compra, em saldos, do dvd; aquele(s) plano(s) do decote da Fergie também merece a futura compra do dvd, seja em saldos ou não; as esgrouviadas cenas finais onde tudo é filme e tudo literalmente queima (incluindo a fantástica cena de sexo e o coito interrompido da missing reel); os olhos da lésbica Dr. Block (Marley Shelton muito bem maquilhada), etc etc etc. Há, na verdade, muitas coisas boas para uma agradável noitinha no cinema. E uma delas, ia-me esquecendo, é o trailer do Machete: gajos feios, gajas boas e falta de juízo.

Ok… pensavam que não iria fazer comparações com o Death Proof? É inevitável, não só por a sua origem ser comum como também o é o seu fim (ambos têm finais femininos, you know, the she-world).
Planet Terror é muito mais esgrouviado que a parte de Tarantino, contudo, no seu todo, não o achei mais conseguido que o outro. Parece-me que, em ambos, poderia haver muito mais economia narrativa, não tendo ainda visto “a experiência” Grindhouse tal como foi concebida, estou até em crer que estas novas montagens, para mercado europeu, vieram prejudicá-los. Como ia dizendo, concordo que este Planet Terror está mais próximo de uma experiência xunga que Death Proof (Tarantino, acreditem ou não, leva-se demasiado a sério... e sai-se bem, pois sabe que já não adianta fazer tha real thing... os tempos são outros), no entanto, além do ponto em que Rodríguez quer acentuar a ingenuidade da experiência, há outro em que perde para o seu par: a simplicidade. Tarantino, ainda que com conversa a mais (lá está a montagem europeia – e se calhar nesta montagem europeia vs. montagem americana encerra-se a questão fundamental, afinal de contas o produto é típico americano), desenvencilha-se melhor de sub-enredos (em que ele é mestre), ao contrário de Rodríguez que perde-se neles à custa de n personagens sem qualquer densidade e com demasiado tempo de antena.
E depois também não tem a mestria de Quentin em dar densidade “more than meets the eye” aos seus filmes. Não concordo que os exploitations sejam filmes rasos sem qualquer interesse para além da sua fruição. Os melhores exploitations são dos melhores filmes que já se fizeram (vejam o meu post anterior), claro que encapotados por elementos sexuais, violentos, e outros que tais, para melhor venderem. Apesar de nem achar Death Proof o melhor filme de Quentin, é sem dúvida um filme mais refinado (palavra mais absurda, mas julgo que correcta, para caracterizá-lo) que o de Robert Rodríguez. No entanto Rodríguez fez mais e melhores planos no seu filme que Tarantino… e acabaram-se as comparações que isto não leva a nada. Ambos merecem a nossa atenção, mais que todos aqueles que, este ano, serão nomeados à categoria de melhor filme estrangeiro pela academia.

domingo, 7 de outubro de 2007

MS .45 - 1981

Thana (Zoë Lund, futura co-argumentista de Bad Lieutenant), muda, frágil, tímida e virgem certamente, trabalha na alta-costura para um estilista de sexualidade ambígua. Nesses minutos iniciais que a vamos conhecendo vamos também sabendo que o seu apartamento está a ser assaltado. Quando ela se dirige para casa a tensão vai naturalmente aumentando, pois o encontro entre ela e o assaltante parece inevitável. Contudo a meio do caminho acontece o inesperado (tão valente como um pontapé nos tomates): é, com uma arma apontada à cabeça, violada por um mascarado (Abel Ferrara, também realizador). Transtornada e esfarrapada chega a casa, senta-se na cama para recuperar o fôlego, ordenar as ideias e chorar. Não tem tempo… dentro de casa ainda está o assaltante - por breves momentos pensei que era o mascarado; não era (uma bigorna a 1km de altura cai sobre os tomates que já estavam doridos). Thana é de novo violada. Não chora – secou-se-lhe a alma. E de alma seca, com um ferro de engomar, mata o violador.
Daqui por diante, e após se sentir confortável ao premir o gatilho da .45, Thana andará pelas ruas nova-iorquinas matando o sexo oposto, mais precisamente, aqueles que exibirão apetite sexual. De inicial figura angelical torna-se em vingativa figura sexual.
No final, mascarada de freira numa festa Halloween, irá matar o seu chefe, que a aliciara sexualmente, e será morta, penetrada por uma faca, por uma colega por quem ela sentira alguma atracção. Colega essa que, ao longo do filme, manda à fava pelo menos um gajo mais atrevido. Esse final é de estalo: Thana incrédula, de .45 em riste, não acredita que foi penetrada pela colega, que parecia partilhar com ela a mesma visão. De estalo porque nesse momento ela chora, apercebendo-se que entretanto perdera a alma.

Geralmente é dito que na génese deste filme está Death Wish (e na génese de ambos estará Taxi Driver, digo eu), de Michael Winner com Charles Bronson, e concordo plenamente. Contudo a impiedade moral de Ms .45 é bem mais forte. Paul Kersey (Bronson) perdia a família (numa sequência também ela violenta) não perdia a alma. O seu único propósito tornou-se a vingança, o propósito de Thana, pelo contrário, era ingénuo, recuperar o irrecuperável, a virgindade. Ambos não conseguem o objectivo, mas a freira, à morte, pelo menos chorou (lembremo-nos do final de Bad Lieutenant)... o outro...? bem, o outro originou umas quantas sequelas cinematográficas.

sábado, 6 de outubro de 2007

China, China – 2007

De João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata vem esta curta que antecede o filme que postei anteriormente. É uma bela curta. Dorothy é China em Lisboa. Ou melhor o espírito da Dorothy, do Feiticeiro de Oz (sim, há títulos de filmes que não se traduzem para inglês), encarna em China, emigrante chinesa, em Lisboa. E, como todos os espíritos que se apropriam de corpos alheios, não se sabe encaixar na realidade. Mas esta Dorothy não tem um cãozinho, tem um filho, não tem sapatos mágicos, apesar de após bater três vezes os calcanhares com os que trás, achar o Martim Moniz local encantado.
O filme é encantado: disparam-se armas e ninguém morre, como nos filmes de John Woo, salta-se e dança-se em cima da cama, que sobrevoa o skyline nova-iorquino em fundo, e esta não parte, etc. Mas o final trás a tragédia. China, ao contrário de Dorothy, não retorna a casa no final…

Tian bian yi duo yun (aka Wayward cloud) – 2005

Os dois filmes de Tsai Ming-liang que antes vira deixaram-me algo frio e distante. Bu San (aka Goodbye, Dragon Inn) não gostei de todo, apesar da premissa me ter aliciado bastante (e desde então ando à cata dos filmes de King Hu), e Dong (aka The Hole), que a espaços gostei mas lembro-me de ter saído dele com as expectativas defraudadas. É certo que os mais badalados e prezados filmes dele ainda não vi mas, somente à custa das melancias, quando o fizer será com será com novo ânimo e interesse. O sabor da melancia continua a não me convencer totalmente mas, em relação aos outros, saí bem mais satisfeito.

Dizia eu, no post sobre o Cypher, que geralmente aprecio os realizadores com mais cuidados nas cenas que nos planos. Pois bem Ming-liang é um realizador que quebra este meu ponto de vista (talvez daí o meu desconforto), para ele um plano é uma cena, e uma cena um só plano (e quando são mais, muito raro, são “simétricos”). A câmara não se move, os planos são geralmente picados e contra picados (os filmes dele são demasiado oblíquos), os diálogos quase não existem e quando surgem parecem irrelevantes. O ritmo dos seus filmes é de difícil assimilação mas, depois de tomarmos o seu pulso, tornam-se hipnótico (nas melhores cenas, claro). No entanto o que mais me fez entusiasmar neste filme terão sido os números musicais que, como já disseram (de forma depreciativa) e concordo, se tornam válvulas de escape à sua austeridade formal.
O filme relata simplesmente o reencontro amoroso entre dois jovens de Taiwan. Ela (Chen Shiang-chiy) de desejos sexuais reprimidos ele (Lee Kang-sheng, actor fétiche de Ming-liang) actor porno. A melancia (ela) e a água (ele) são os elementos afrodisíacos, e metafóricos, dos seus desejos.
Nos números musicais – o isco que me atraiu - são bons (e montados com vários planos, é o ritmo estúpdio, é Hollywood) há um que destaco: o da aranha, da viúva negra, que - trocadilho foleiro - arranha. Mas há outros momentos, extra-musicais, fantásticos no filme (que me reabilitam o interesse nas obras mais aclamadas de Ming-liang), o festim de lagostim – mórbido -, a casa de banho cheia de garrafas de água – desejos no w.c., todos sabemos o que isso é -, os bastidores das cenas porno – a falta de desejo no w.c., poucos saberão o que isso é -, etc, etc, etc (há muitos planos bonitos no filme).
Mas o ponto alto, a cena das cenas, o plano dos planos, o clímax - o momento de suspensão da respiração - é do camandro. E todos engolem em seco, só ela é que não mas, repito, todos engolem. Como nunca viram, spoiler: FELLATIO!

sexta-feira, 5 de outubro de 2007

Invasion of the body snatchers – 1956

A primeira vez que vi os body snatchers foi pela mão/câmara do Abel Ferrara e adorei. Descontando (mas não tanto) o facto de ser um acérrimo fã de Ferrara achei aquela história cheia de potencialidades, daquelas que têm a capacidade de se metamorfosear consoante a época. É certo que vi o filme sabendo que havia duas versões que o antecediam, a de Don Siegel, um clássico sci-fi e que me trás aqui, e a de Phillip Kaufman que é, segundo algumas fidedignas fontes, um excelente remake dos anos 70’s. Este ano virá outra versão de Oliver Hirschbiegel, espero-a ansioso. Remakes e mais remakes, a invasão é também de film snatchers (filmes cada vez com menos alma e mais cínicos, assim espero este remake). É uma história cheia de potencialidades porquê? Porque trata de um invasor exterior que se dissimula no quotidiano de uma comunidade, modificando-a, e isto a meu ver dá pano para mangas, e soutiens labregos. Cingindo-me ao filme de Siegel que, como devem saber, é um grande cineasta, daqueles que filma o essencial, sem grandes parangonas.

Dr. Miles Bennell (Kevin McCarthy) é o doutor retornado à terreola que o viu nascer. Voltou por desgosto amoroso, e lá reencontra a sua namoradinha de infância Becky Driscoll (Dana Wynter). Claro está que mais minuto menos minuto estará um nos braços do outro – estamos no período clássico de Hollywood, querem o quê? Mas com a chegada do retornado vêm também queixas de pessoas que dizem que familiares e vizinhos já não são quem eram. Têm a aparência mas já não têm a alma, as emoções e os feitios que supostamente os caracterizariam. Depois de várias hipóteses levantadas pelo médico e psiquiatra descobrem que algo de terrível brota do solo de cidade e que replica os seus cidadãos.
Siegel nunca nos explica cabalmente a origem dos invasores que se parecem com couves e que, com qualquer efeito espumante, expelem corpos humanos das entranhas para substituir as pessoas que depois, de qualquer modo, são aniquiladas. E é essa substituição que me fascina… porque é que os substituem? Neste filme, assim como na versão de 1993, a “substituição” ocorre aos olhos deslocados. Isto é uma parábola sobre um o retornado Dr. Bennell que quando chega à sua terra natal vê tudo, naturalmente, diferente, nada é como era, nem a namoradinha Becky é a mesma. Daí o seu pânico e desnorte. Todos, aos poucos, vão sendo apanhados e, curiosamente, coincide com o aprofundar das suas relações com eles. Isto é, a visão que ele mantém deles já não coincide com a actual, pois já o tratam como homem e como médico. Pormenor, se calhar errado mas fiquei com essa sensação, a ameaça os invasores são nos quase sempre mostrados em segundo plano, como se o Dr. Bennell estivesse também ele fora do plano, aliás ele não só é o narrador como também o filtro ao nosso preconceito.

Na verdade o filme é praticamente um flashback, só os minutinhos iniciais e finais são do presente. E esse presente dir-me-á que estou completamente errado, que a invasão está de facto a ocorrer, mas o último plano devolve-me o delírio. Pondo os pontos nos ii e jj, Invasion of the body snatchers é uma grande parábola sobre a forma como a realidade se vai metamorfoseando ao nosso olhar.